top of page

 

 

 

 

 

 

 

 

A Urgência do Enfrentamento da

Psicopolítica Neoliberal

José Mendes de Oliveira

21 de novembro de 2021

A teoria crítica proposta pela Escola de Frankfurt, com destaque para as contribuições de Theodor W. Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), é geralmente considerada um pensamento pesado e pessimista, particularmente no que se refere à análise dos processos de dominação no contexto da sociedade capitalista moderna. Essa dominação envolveria uma ocorrência bizarra: a difusão massiva da informação apoiada nos meios midiáticos como um dos mecanismos responsáveis pela esterilização do conhecimento e eliminação da capacidade crítica dos indivíduos. Entre os maiores feitos da comunicação massificada e dos mecanismos da indústria cultural estariam justamente a homogeneização dos comportamentos e a passividade dos sujeitos, cada vez mais coisificados e submetidos às seduções do marketing. O capitalismo seria capaz de apresar a própria cultura nos padrões de produção uniformizadores e de criar um mercado de bens culturais alienante.  Na ausência de uma visão mais crítica sobre o mundo, as pessoas tornar-se-iam mais dóceis e, de forma hedonista, mais sujeitas à fruição de prazeres e à falta de criticidade, ainda que inseridas em condições sociais e econômicas perversas. Embora não possa ser considerado o único fator de motivação, é possível admitir que por detrás da teoria crítica encontrava-se a perplexidade dos pensadores da Escola de Frankfurt com o fenômeno do controle das massas perpetrado pelos movimentos nazistas e fascistas, bem como a expansão acrítica da cultura de massa na sociedade norte-americana. Mas, retomando a questão do pessimismo, o incômodo com a teoria critica atingiu, desde o início, quem se apegava à crença na potência dos processos revolucionários advindos do antagonismo de classes nas sociedades capitalistas. Talvez essa seja a inflexão das discórdias: um dos aspectos evidenciados pela teoria crítica é a capacidade do capitalismo industrial de tornar as relações de poder mais complicadas e, com os seus mecanismos de dominação, dificultar os processos emancipatórios. O capital é capaz de se reinventar mediante a transformação, manipulação e apropriação mercadológica de seus contraditórios. A capacidade de domínio do big brother sobre as consciências e de transformação de ideais libertários em mercadoria impede as vias revolucionárias tradicionais. Não obstante as insatisfações com a teoria, por parte dos mais ortodoxos, o que não se pode negar é a sua genuína sofisticação, particularmente no que se refere à compreensão do poder e da dominação na era do capitalismo industrial em que a própria razão desmistificadora pode cair na armadilha da mitificação e ser colocada a serviço do obscurantismo e da destruição.

A partir da década de 80 do século passado, após a crise do Estado de bem-estar social, as sociedades capitalistas inclinaram-se ao neoliberalismo, uma doutrina econômica afeita à radicalização dos princípios do liberalismo clássico em oposição ao Estado regulador e assistencialista, ou seja, uma doutrina voltada à defesa extrema do livre mercado e da redução do Estado. Desde então, o neoliberalismo tem pautado governos no mundo todo de forma espasmódica, mas ainda persistente. Ele aflora em momento de globalização da economia, de intenso desenvolvimento tecnológico e também do recrudescimento de ideologias autocráticas. Essa expansão radical de uma doutrina, que cultua e cultiva o individualismo e o narcisismo, inaugura uma fase ainda mais incisiva de dominação, agora auxiliada pelas tecnologias digitais e pelas mídias sociais. Com a atenção voltada para essas ocorrências, alguns intelectuais passam a escrever sobre o fenômeno da psicopolítica, a exemplo do filósofo Byung-Chul Han[1], com análises que aprofundam e complementam o conceito de biopolítica explorado por Michel Foucault (1926-1984). Os trabalhos de Byung-Chul são considerados como expressões de um pessimista[2], julgamento similar destinado aos frankfurtianos, e não é por menos: o filósofo debate de forma muito envolvente e convincente as formas de dominação na era do capitalismo financeiro e de hegemonia do neoliberalismo. A principal evidência desse fenômeno é a exploração total do ser humano embalada por muita resignação, que inviabiliza atos revolucionários baseados no antagonismo de classes[3]. O filósofo demonstra com suas análises que, ao contrário do poder disciplinador das sociedades industriais em que os meios de dominação e penalização eram visíveis e se enquadravam no modelo do panóptico benthamiano[4], o que se estabelece atualmente é a introjeção da dominação. A ideologia do empreendedorismo e a culpabilização do sujeito pelo próprio fracasso traduzem o poder de um sistema que carrega para o interior do sujeito a relação senhor-escravo. O capitalismo na sua versão neoliberal tem a capacidade de apropriar-se do seu contraditório e de esterilizar os seus próprios antagonismos. 

“O poder que sustenta o sistema da sociedade disciplinar e industrial era repressivo. Trabalhadores eram explorados brutalmente pelos donos das fábricas. Essa exploração estrangeira violenta dos trabalhadores levava, então, a protestos e resistências. Era possível aqui uma revolução que derrubasse a relação dominante de produção. Nesse sistema repressivo não só a opressão mas também o opressor são visíveis. Há um opositor concreto, um inimigo visível contra quem se opor.

 

O sistema dominante neoliberal está estruturado de uma maneira completamente diferente. O poder que o sustenta não é mais repressivo, mas sedutor, ou seja, fascinante. Não é tão visível quanto era no regime disciplinar. Não há mais um opositor concreto, um inimigo que oprime a liberdade e contra o qual seria possível fazer uma resistência”.[5]

O que há de muito interessante na obra de Byung-Chul? Do nosso ponto de vista, além do estilo arrojado do autor, há a capacidade de jogar muita luz sobre o que anda acontecendo pelo mundo afora, inclusive no Brasil. Qual a razão de tanta resignação? Por que a brutalidade avança no cotidiano sem reação? Por que temos a impressão que a pulsão de morte tomou conta da vida? Por que não conseguimos nos contrapor de forma efetiva ao mal feito político? Por que nos deixamos conduzir por bárbaros? A filosofia de Foucault viabilizou a compreensão do exercício do poder em uma escala de dominação microscópica e evidenciou, historicamente, como os processos de dominação aconteceram inclusive na esfera do saber. Por intermédio dos seus estudos ficamos sabendo, por exemplo, que o poder disciplinar viabilizou o domínio dos corpos e, por intermédio dele, a classificação e controle dos sujeitos produtivos e improdutivos. No estágio atual, como demonstra Byung-Chul, nos deparamos não mais com esse tipo de domínio, mas com algo muito mais radical e perverso: o domínio psicológico.

“A psicopolítica neoliberal é a técnica de dominação que estabiliza e mantém o sistema dominante através da programação e do controle psicológico”.[6]

Esse domínio é viabilizado pelo aprisionamento do sujeito em um universo em que seu comportamento cognitivo e emocional é, por assim dizer, colonizado[7]. O sujeito é absorvido por um sistema totalizante em que o pensamento e as emoções são geridas na padronização das mídias, das estatísticas normalizadoras das big datas e sua liberdade reduzida à falsa impressão de que pode ser dono de si mesmo tornando-se um empreendedor. No mundo do neoliberalismo digital, como demonstra Byung-Chul, o sujeito expõe e supervisiona a si próprio e com isso carrega uma espécie de panóptico interno e, dessa forma, o monitoramento não é realizado por uma torre de vigilância externa, mas delegado a todos os indivíduos. As redes sociais é um bom exemplo disso: nelas se constroem e se defenestram conceitos e imagens a todo o momento, mas o mais importante é manter-se conectado como se isso fosse a exigência da sobrevivência da própria identidade. A autenticidade do sujeito requer, contraditoriamente, a sua total transparência (a sua exposição diuturna) e aprovação por intermédio de cliques e likes. Nesse tipo de realidade, a visão das barreiras entre classes é nublada ou até mesmo desaparece como um elemento da consciência e, por consequência, torna-se mais difícil que alguém possa perceber o antagonismo entre os interesses e estabelecer uma ação política revolucionária. Pode parecer que essa linha de raciocínio nos conduz inevitavelmente à situação em que não se vislumbra saídas, à sensação de que nos encontramos engessados e de que o fim da história possa ser declarado. No entanto não há nessa análise a pretensão de um beco sem saída. A remição do sujeito é possível mediante a confrontação da psicopolítica neoliberal por uma arte do viver, como conceitua Foucault e o próprio Byung-Chul, que viabilize a superação do terror psicológico e a criação de novas significações para a pessoa (rompe-se com o próprio conceito de sujeito e sujeição) e para a coletividade dos indivíduos (mediante o reconhecimento do outro)[8]. No exercício do saber, há ainda a possibilidade do resgate de uma filosofia indagadora e auto reflexiva, que Byung-Chul define com base em Gilles Deleuze (1925-1995) como o idiotismo, ou seja, tornar acessível ao pensamento um campo de imanência de acontecimentos e singularidades que escapa ao poder da subjetivação e da psicologização. De nossa parte, em reverência aos frankfurtianos, diríamos, talvez olhando para o mesmo horizonte, que precisamos retirar a razão de seu cativeiro e voltar a comprometê-la com uma reflexão emancipatória. No caso específico do Brasil, não vislumbramos algo nesse sentido neste momento, a não ser que consigamos impor sobre a barbárie a vitória de um projeto civilizador e humanista, que viabilize aos sujeitos romper com as amarras da ignorância e retomar uma visão de mundo comprometida com a autonomia, com a dialogia, com o reconhecimento do outro e com as práticas democráticas. Para tanto, consideramos crucial que esse projeto resgate e valorize, como primeiro ponto de pauta, uma ação educativa radical, sobretudo compromissada com o desenvolvimento da capacidade reflexiva das pessoas, com o conceito de educação como prática para a liberdade - em função da capacidade de criação e compartilhamento de novos sentidos e formas de viver - e não como ato de conformação às experiências da vida social e das políticas hegemônicas.

_______________________________________

 

[1] Filósofo e ensaísta de origem coreana, que desenvolveu estudos sobre Martin Heidegger (1889-1976) e, atualmente, atua como professor de filosofia  na Universidade de Artes de Berlim.

[2] Essa seria supostamente a posição do filósofo italiano, de orientação marxista, Augusto Negri.

[3] Há várias obras de Byung-Chul Han traduzidas para o português, mas, em função da compreensão de seus estudos e argumentos, destacamos as seguintes: Psicopolítica: O Neoliberalismo e as Novas Técnicas de Poder (Editora Âyiné), Capitalismo e Impulso de Morte: Ensaios e Entrevistas (Editora Vozes) e Agonia de Eros (Editora Vozes).

[4] Trata-se de um modelo de presídio ideal, proposto pelo filósofo utilitarista inglês Jeremy Bentham (1748-1832), construído com celas em círculo, cujo centro é ocupado por uma torre de vigilância onde se coloca um vigilante, que pode vigiar todos os presos ao mesmo tempo sem que eles percebam que estão sendo observados.

[5] Byung-Chul Han. Capitalismo e Impulso de Morte: Ensaios e Entrevistas. 1ed. Petrópolis. Editora Vozes, 2021 (p. 32-33).

[6] Idem. Psicopolítica: O Neoliberalismo e as Novas Técnicas de Poder. 1ed. Belo Horizonte. Editora Âyiné, 2018 (p.107).

[7] Byung-Chul não utiliza esse conceito, que nos pareceu adequado, ainda que não se possa traduzi-lo integralmente com o mesmo sentido estabelecido no pensamento de Jürgen Habermas.

[8] Tem-se a compreensão da vida como experiência estética em que o sujeito, voltado à sua própria transformação de acordo com os princípios de uma ética afeita à liberdade, escolha e resistência as imposições alienantes, lança-se contra o sistema ordenador, que o aprisiona, que o sujeita e o torna dócil (Conferir: Manoel Barros da Motta (org.). Michel Foucault: Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2004).

WIN_20180531_163635.jpg

© 2017 by Marketing Inc. Proudly created with Wix.com

bottom of page