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Atraso e Crise Moral

José Mendes de Oliveira

11 de abril de 2023

 

“A oposição burguesia-aristocracia, setores urbanos-setores rurais, característica de outras sociedades, não se manifesta no Brasil com a mesma agudeza. O principal conflito é o que ocorre entre os representantes dos setores agrários decadentes, apegados às formas tradicionais de produção, ao trabalho escravo e aos valores da sociedade tradicional, e os novos grupos que dispunham de maior capital e, por isso, mais ‘progressistas’, ligados à agricultura e às novas empresas”[1].

 

Há muita gente que se julga progressista, ou é definida como tal, que confunde o conceito de moral com moralismo e opta por desprezá-lo de forma inconsequente. Embora, realmente, o conceito possa ser apropriado por quem afaga tendências conservadores e até mesmo reacionárias, particularmente aqueles que o associa com a seletividade dos costumes prediletos, geralmente relacionados a valores e ideais muito específicos que acobertam interesses econômicos e políticos, a moral é algo que não pode ser reduzido a tendências meramente ideológicas. O conceito diz respeito, de um ponto de vista filosófico, mas também prático, ao conjunto de princípios que têm a ver com a virtude, com o bem, com a honestidade e com o compromisso da vida social. Isso, inclusive, é um truísmo sociológico: humanos não vivem em sociedade sem esses princípios. Não significa que deva ser tratado como fato trans-histórico, porque de fato a moral é um fenômeno social e cultural que se comporta de acordo com padrões definidos dentro de marcos históricos. No entanto, sem ela, uma sociedade corre o risco de perder o rumo e, facilmente, banalizar o mal. Ainda que a definição do mal e do bem possa ser passível de problematização e de intermináveis debates, as sociedades devem estabelecer o que é minimamente aceitável para que existam de forma civilizada, o que não significa necessariamente eliminar definitivamente os conflitos nem muito menos adotar uma perspectiva sincrônica e congelada da realidade. É necessário reiterar e deixar muito claro: os próprios fundamentos da moral são passíveis de mudança no decorrer da história, mas o seu poder de balizamento parece ser um fato irrefutável.

 

Tomando, portanto, como pressuposto que a moral é um aspecto essencial da vida social, sem querer adotar uma perspectiva excessivamente durkheimiana, é possível admitirmos que a sua fragilização é também uma debilitação do vínculo social. Muitas sociedades em crise podem ter seus problemas compreendidos de acordo com fatores econômicos, mas não parece razoável circunscrever a compreensão dos fatos a eles. Há inúmeros aspectos históricos e culturais nesses processos, que concorrem para a explicação das situações mais periclitantes e, entre eles, se destaca certamente a questão moral. No caso brasileiro, por exemplo, parece ser indiscutível que o país padece de problemas dessa ordem há muito tempo. A ocorrência mais recente é o próprio bolsonarismo, que pode ser percebido não só como um fenômeno político diretamente associado ao jogo de interesses econômicos das elites tupiniquins[2], mas também como reflexo de uma crise moral muito significativa. Pode parecer inicialmente contraditório admitir essa relação, quando se considera o tradicional discurso moralista de partidários da direita ou da extrema direita, mas, relativizado o discurso, a prática desses reacionários encontra-se muito próxima de vários desvios sociais, que podem abranger da corrupção ao crime organizado. É por essa razão que não causa surpresa a relação mais próxima entre os adeptos do bolsonarismo e grupos de milicianos e de contraventores. A perspectiva de desafio ao sistema ou a clara disposição à destruição das instituições, que pode ser observada no discurso e na prática bolsonarista, não se confunde com qualquer ideologia mais orgânica de contraposição ao Estado, a exemplo do que se observa entre os adeptos do neoliberalismo. Ela é muito mais radical e revela o desprezo por qualquer tipo de regra ou de norma que possa criar barreiras para a ação desordeira, particularmente no que se refere à defesa radical de práticas ilícitas para o enriquecimento e para a demonstração aberta de preconceitos. No que se refere ao exercício do poder, não há como negar o perfil neofacista do bolsonarismo, mas sobressai na instrumentação desse poder o jogo do empreendedorismo ilegal e imoral a exemplo das bizarrices definidas como rachadinhas, apropriação indevida de bens públicos e outras peculiaridades de um país que se criou nas bases do clientelismo, da patronagem e dos inúmeros privilégios de oligarcas, plutocratas e burocratas a serviço de toda essa turma.

A crescente nazificação de segmentos da sociedade tupiniquim particularmente nas regiões Sudeste e Sul, de forma muito bizarra para a situação de um país historicamente marcado pela miscigenação e pela presença significativa de povos originários, pretos e pardos, é outro aspecto de um fenômeno que não se explicita apenas pelo preconceito gerado pelas distinções econômicas de classe, porque é também uma questão moral. O bolsonarismo tem sido, desde o seu aparecimento, um fator de desinibição para a defesa de crenças e posturas ideológicas que reforçam e justificam não só as diversas desigualdades historicamente estabelecidas no arremedo de uma nação que já nasceu torta e com muitas ideias fora do lugar, mas é, sobretudo, uma manifestação objetiva da degeneração de uma sociedade incapaz de engendrar e manter padrões de coesão e solidariedade social. Essa debilidade pode ser constatada de forma estrutural na própria formação social do país, que se edificou em bases escravocratas, regido pelos desmandos de elites colonizadas e indiferentes a todo tipo de miséria gerada no processo de concentração da riqueza. O fenômeno da apartação social está intrinsecamente vinculado ao processo de construção do país e se reproduz no decorrer de gerações. A falta de um processo de quebra revolucionária foi fundamental para a cristalização e normalização de uma sociedade extremamente hierarquizada e excludente. A expressão da barbárie tupiniquim encontra-se presente em pequenos e grandes ocorrências em que privilégios e o princípio do levar vantagem impera sobre qualquer padrão mais honroso de civilidade. É por essa razão que comportamento recrimináveis se tornam naturais nas pequenas transações do cotidiano e nos negócios mais complexos da vida social. A sociedade torta, hierarquizada, desigual e profundamente marcada pela patronagem e pela vassalagem aceita com condescendência à violência como prática cotidiana, desde que circunscrita aos limites das favelas, dos assentamentos e dos bairros pobres, que são normalmente o foco das rotineiras intentonas policiais.

A política da conciliação estabelecida como freio antirrevolucionário desde os primórdios da Primeira República é também uma engenharia, que retroalimenta comportamentos e práticas imorais principalmente no espaço político. Ela se coaduna muito bem com a corrupção que perpassa todas as esferas de governo, de poderes e da vida privada.  A conciliação encontra-se na raiz do sistema de coalizão no universo político, que é a porta para a permanência do status quo e manutenção dos privilégios das oligarquias e dos plutocratas tupiniquins. O sistema de arranjos e combinações conservadoras reforça os privilégios, o clientelismo e o individualismo de quem almeja se dar muito bem no jogo social da excludência. A degeneração moral serve a dois propósitos aparentemente contraditórios, mas que, em verdade, são complementares: de um lado permite a ação inescrupulosa e a naturalização do malfeito e, do outro, serve ao propósito de uma narrativa conservadora que cativa e mobiliza os estratos medianos. O golpismo como ação recorrente das elites em defesa de seus interesses encontra sustentação no discurso moralista sempre que necessário. A corrupção que serve aos seus propósitos de enriquecimento fácil é também o elemento que serve ao mote mobilizador dos segmentos medianos, que são convenientemente requisitados, inclusive em sua vertente militarista, sempre que se torna necessária a ameaça ao estado de direito e às instituições democráticas em função da manutenção do status quo. Nesse sentido, o bolsonarismo não é de forma alguma um fenômeno novo na sociedade brasileira, mas, mais uma vez, a opção requentada do autoritarismo das elites urbanas e agrárias para evitar qualquer tipo de perda em seus privilégios econômicos. A crueldade de grandes latifundiários, setores do empresariado industrial e, destacadamente, dos representantes do rentismo é também uma questão que esbarra na falta de princípios morais. Para esses setores a cisão da sociedade em dois universos muito distintos e desiguais em que a maioria se reduz a despossuídos, em situação precária e sem expectativas, é o melhor dos mundos. Rápida revisão da história tupiniquim permite perceber que essas elites avançam nas ações golpistas sempre que se avizinha alguma possibilidade de melhoria na situação econômica e social das populações mais desassistidas. A questão da exploração no Brasil transcende qualquer lógica econômica que pretenda situá-la em termos da tradicional relação capital-trabalho, porque se ancora fundamentalmente em seu passado escravocrata, que se fundamenta na destituição de todos os direitos dos que não nasceram com as marcas dos privilégios, inclusive o da própria sobrevivência ou existência. Em verdade as elites tupiniquins não são somente atrasadas, mas moralmente perversas, insensíveis, tirânicas e hediondas. A questão não é meramente econômica porque envolve também a distorção do caráter[3]. Até certa medida, é por essa razão que essas elites conseguem abraçar o que há de mais abjeto na política – a exemplo do neofascismo e do neonazismo -, bem como naturalizar a perversão de narrativas e ações autoritárias, toscas e anti-humanistas.

Por conseguinte, imaginar que essas elites sejam capazes de encabeçar um projeto civilizatório para o país é, no mínimo, acreditar em contos de fadas ou estórias fantasiosas. Por mais contraditórios que sejam os processos sociais e por maior que seja a boa vontade em admitir a mudança no processo histórico, o aperfeiçoamento dos atores e seu engajamento ou protagonismo político, a tendência quase que ciclotímica das elites tupiniquins tem sido as articulações e malabarismo para manter as rédeas nas mãos de acordo com a máxima de Tomasi de Lampedusa: é preciso mudar, desde que tudo continue como se encontra. No teatro dos acordos, conchavos, coalizões e pacificações nos moldes brasileiros é difícil prenunciar a mudança transformadora. A saída sempre pela porta da conciliação reserva ao trabalhador, ao pobre e aos destituídos o pior lugar na arquibancada. No jogo de cenas que se desenha no transcorrer da história, o texto parece ser o mesmo e as inúmeras artimanhas políticas confundem o mais esforçado dos mortais, que precisa se desdobrar para compreender o que é precisamente a Direita, o que é ou quem é genuinamente da Esquerda, o que é o Centro e o que o cidadão comum tem a ver com tudo isso quando sempre perde, inclusive o próprio voto, e paga o pato por acordos que no final das contas sempre beneficiam o topo da hierarquia social. É difícil compreender como a sociedade brasileira aceita o instituto da anistia e a impunidade sem traumas e de forma recorrente. Perdoam-se os maus feitos, assim como se abraça o inimigo de ontem como o amigo de hoje, sempre que conveniente para os torpes acordos políticos. A questão não é necessariamente a criminalização da política, mas a falta do decoro que não se sustenta frente a força das maracutaias. O cidadão infeliz e sem privilégios sente-se o ludibriado e entrega os pontos: se é para glorificarmos o cinismo, que sejamos todos cínicos! Nessa situação de descrédito e cansaço, as correntes da extrema direita, obviamente associadas com as elites depredatórias, sentem-se à vontade e ocupam espaços cada vez mais significativos ao se posicionarem com a narrativa do antissistema. Em verdade, são genuinamente a cara do sistema, mas o discurso apaixonado, as ações violentas e a coragem de encarar de forma agressiva as oposições, com construções mirabolantes e geralmente mentirosas, atraem parte considerável da população. O cidadão espezinhado e cansado passa a acreditar no conto das carochinhas e, dessa forma, se entrega ao devaneio típico dos patriotas otários, metidos em trajes da CBF ou enrolados no lábaro estrelado, balbuciando entre inúmeros erros o hino nacional, que nunca soube com precisão o fraseado ou a melodia. No fim das contas, é isso que as elites tupiniquins sempre desejaram, ou seja, um arremedo de nação e um simulacro distorcido de cidadania. Essa é a situação mais adequada para os seus projetos de poder, proteção de seus interesses e manutenção de seus privilégios.

Todo esse marasmo histórico pode e deve ser explicado, certamente, em função da dinâmica econômica, mas, reiteramos, é necessário adicionar o ingrediente da formação do caráter das classes dominantes. A falta de empatia com o país, o desprezo pelo próprio povo, a necessidade de apegar-se a valores xenômanos e a visão rasteira de uma nação que serve apenas para ser saqueada, marca de forma significativa o perfil das elites tupiniquins. Essa desafeição em relação ao país pode ser encontrada por detrás de cada ação econômica de caráter predatório: está presente nas ações de desmatamento ilegal, na exploração desenfreada do comércio de commodities, no garimpo ilegal e no genocídio de povos originários, entre tantas outras ocorrências. A via eleitoral tem sido, no final do túnel, a última esperança dos desesperados, que, sem fôlego, ainda tentam salvar a precária e malfadada democracia brasileira, mas nada é suficientemente forte para manter esse anelo ou demonstração de fé. O jeitinho brasileiro que permite soluções conservadoras e conchavos não garante governos com retidão ideológica e programática. No caso brasileiro, não é incomum a surpresa de constatar que o aparente inimigo de outrora agora é o aliado de primeira linha no parlamento, na burocracia, nas diversas esferas de governo e de poder e, particularmente, no idolatrado mercado. É difícil imaginar na terra de Macunaíma a possibilidade de um governo que realmente esteja comprometido e que cumpra uma agenda de compromissos com os desvalidos. Em geral, os pressupostos partidos progressistas agem dentro das possibilidades e dos fundamentos do próprio sistema e, por conseguinte, mantêm uma relação de acordo com o andar de cima e uma postura populista com o andar de baixo. Não há ruptura quando o esquema é essencialmente voltado para os arranjos eleitorais, eleitoreiros e para a exclusiva manutenção da governabilidade, que, por sua vez, nada mais são que a expressão institucional do jogo necessário para a preservação dos privilégios econômicos.  De acordo com essa lógica, os donos do poder nunca perdem, mas, pelo contrário, asseguram as condições para a manutenção de seus interesses.  Por essa razão se tornam ilusórias as promessas de políticas de reformas estruturais, a exemplo de uma reforma tributária realmente voltada para a promoção de um sistema mais justo de tributação, tendo em vista que as grandes riquezas e os dividendos dos mais ricos são preservados incólumes em detrimento da população assalariada. Da mesma forma, não se observam políticas incisivas para uma assistência à saúde ampla, irrestrita e acessível à maioria dos brasileiros, ainda que o SUS possa ser uma boa ideia, nem uma revolução educacional emancipadora[4]. Pelo contrário, neste exato momento, sob pressões e críticas de estudantes e educadores, o Ministério da Educação titubeia na defesa de uma reforma do ensino médio alienante e excludente. O país é injusto e essa injustiça encontra-se na base de sua evolução como sociedade. Desde o período colonial, os arranjos políticos são estabelecidos para proteger os mais ricos, tendo em vista que são os principais protagonistas na conquista e manutenção do poder na terra de Macunaíma. Em verdade, as poucas conquistas populares no decorrer da história decorrem, na maioria dos casos, de concessões e distensionamentos. Por exemplo, pode-se admitir, sem sombras de dúvidas, que a abolição da escravatura não foi uma conquista, mas uma concessão dos grupos de elite estabelecida no limite das pressões e das inconveniências econômicas, assim como a distensão do regime ditatorial na década de oitenta foi marcado pela vergonhosa opção de um colégio eleitoral onde o regime estropiado deu claras demonstrações de força e de influência. A lógica é antecipar-se, principalmente por intermédio do Estado, a qualquer avanço reivindicatório popular com caráter mais mudancista. O método consiste basicamente nas estratégias para a cooptação e, se necessário, no constrangimento por intermédio da força e da violência. Nesse último caso, além da cultura golpista e da adoção de regimes autocráticos emblematizados nos golpes e traições recorrentes, o uso regular de forças policiais ou de repressão é o meio mais usual para manter acuados os movimentos sociais e as manifestações dos segmentos sociais marginalizados. A reinvindicação de direitos, quaisquer que sejam, é a ameaça mais temida pelas elites tupiniquins.

Esperar, portanto, que os segmentos das elites brasileiras possam, de alguma forma, assumir um projeto civilizatório para o país é deixar-se enganar e, na melhor das hipóteses, revelar uma miopia extraordinária em relação à própria história do país. É muito evidente que essas elites estão dispostas às soluções mais radicais para manter os seus ganhos extorsivos e isso inclui acabar com a frágil democracia brasileira. A chegada da extrema direita ao poder pode ser vista, em parte, como a cooptação dos setores medianos conservadores, mas é, indubitavelmente, uma opção tramada e conduzida pelas elites econômicas e seus consortes nos setores militares, policiais e dentro da própria burocracia do Estado. Após quase quatro anos de barbarismo da gestão bolsonarista, a recente vitória de uma frente ampla mais democrática pode ser um suspiro para reter a destruição do quadro institucional e do estado de direito, mas, certamente, não é a promessa certeira de um processo mudancista radical. Ela é, como sempre ocorreu na história do país, mais um arranjo e mais uma concessão de setores das próprias elites assustados com os excessos da barbárie bolsonarista. A ambiguidade da grande mídia em relação ao próprio governo e as chantagens do empresariado e rentistas, além da permanência de quadros do governo anterior na máquina pública, são sinais claros e evidentes de que mudanças significativas estão, até se prove o contrário, descartadas. A velha cantilena do controle fiscal, do teto de gastos e da necessidade de um Estado contido sob a tutela dos mais ricos permanece e, tudo indica, o governo da frente ampla cederá em alguma proporção à pressão da plutocracia tupiniquim. Pesa obviamente nessa equação um parlamento majoritariamente de direita e de extrema direita, garantidor dos interesses dessa plutocracia, que não tem como objetivo facilitar a vida de quem conduz o Poder Executivo. Não é por menos que o atual Ministro da Fazenda tem gastado fração expressiva de seu tempo, nos cem primeiros dias de governo, para negociar um novo arcabouço fiscal e, docilmente, apresentá-lo a empresários e rentistas. O controle de gastos públicos para muita gente soa estranho, assim como soa estranha a defesa de juros estratosféricos impostos pelo Banco Central, comandado por dirigentes indicados pela gestão bolsonarista, quando o país precisa urgentemente de investimentos estratégicos, retomado do crédito e desenvolvimento para a geração de empregos e renda. Tudo indica que para os trabalhadores não haverá uma prestação de contas, a não ser as difíceis negociações de reajustes salariais frente a ameaça inflacionária, e para os setores medianos, tão conservadores, tão esquizofrênicos e tão dispostos a aderir aos apupos da extrema direita, talvez reste apenas um pouco mais de ódio ao perceber a crescente perda de poder aquisitivo e o provável aumento da carga tributária, que se tornará inevitável frente à necessidade de arrecadação estabelecida no contexto do arcabouço fiscal, não obstante a promessa ministerial no sentido contrário. O Brasil é isso, um país melancólico e ciclotímico em que, historicamente, ricos defendem com unhas e dentes seus privilégios e os pobres trumbicam na corda bamba da sobrevivência. Talvez esse seja o destino desse gigante atrofiado, mas não adormecido pelo menos para as suas elites, que sabem agir muito bem na defesa de seus territórios e interesses. De qualquer forma, o marasmo tupiniquim tem sentido e lógica, ele é fruto e condição necessária para a existência de um país desigual, hierarquizado e extremamente atrasado. As elites souberam, no passado, harmonizar o discurso liberal, que defendia contraditoriamente a liberdade, com o sistema colonial, escravagista e senhorial de produção. Da mesma forma, têm demonstrado que sabem, nos dias de hoje, associar o mesmo discurso com os excessos da extrema direita, com o culto aos regimes de exceção e com a banalidade do mal. É em nome de uma liberdade limitada, restrita a seus próprios interesses, que defendem pautas absurdas, ordenadas pelo ódio e, sempre que necessário, lançarão mão de golpes, acordos e artimanhas que permitam manter tudo como dantes no quartel-geral em Abrantes. Afinal de contas, não há limites morais para quem observa a vida como uma guerra, que legitima os próprios privilégios com o discurso mentiroso do mérito e que guarda no recôndito da alma o ímpeto para se enriquecer a qualquer custo e com pouco dispêndio de esforços, ainda que isso signifique sacrificar a própria galinha dos ovos de ouro. Por mais que isso seja totalmente irracional, não causa constrangimentos nas elites tupiniquins, muito menos peso na consciência, elas topam qualquer aventura para manter as burras cheias e o resto que se dane.

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[1] Emília Viotti da Costa. Da Monarquia à República. 9ed. São Paulo. Editora Unesp, 2010 p. 263.

[2] Tendo em vista a dificuldade de definir as elites na condição de classes dominantes com uma precisão cirúrgica, sobretudo devido às alianças e conchavos que estabelecem entre si, optamos por percebê-las, ainda que de forma aproximada, como algo relacionado com o conceito de elite cunhado por Wright Mills, ou seja, atores sociais que ocupam determinadas posições e tomam decisões nas principais hierarquias e organizações da sociedade, que comandam grandes negócios, governam a máquina do Estado e as organizações militares. Em outras palavras, atores que ocupam os postos de comando estratégico da estrutura social, no qual se centralizam os meios efetivos do poder e da riqueza (Conferir: C. Wright Mills. A Elite do Poder. 4ed. Rio de Janeiro. Zahar, 1981). De acordo com essa perspectiva, no Brasil contemporâneo, trata-se entre outros de empresários do agronegócio, de empresários do setor industrial, de banqueiros e rentistas, de dirigentes políticos, de lideranças religiosas, de militares - inclusive de forças policiais -, de proprietários de empresas de comunicação e mídia, bem como de intelectuais e burocratas com atuação nos setores público e privado, que contribuem, de forma direta ou indireta, para o processo de reprodução e manutenção do status quo.

[3] Nesse caso, a referência ao conceito de caráter, grosso modo, se aproxima da definição de Eric Fromm: “(...) o caráter pode ser definido como a forma (relativamente permanente) por que a energia humana é canalizada no processo de assimilação e socialização. (...) O fato da maior parte dos membros de uma classe social ou cultura compartilhar elementos significativos do caráter e de poder falar-se de um caráter social, representando a essência de uma estrutura comum à maior parte das pessoas de uma dada cultura, mostra até que grau o caráter é formado por padrões sociais e culturais”. (Eric Fromm. Análise do Homem. 13 ed. Rio de Janeiro. Zahar Editores, 1983 – páginas 55 a 60).

[4] Cerca de 58% dos gastos das famílias brasileiras são consumidos com o pagamento de planos de saúde [Conferir: Ricardo Montes de Moraes & outros. Gastos das Famílias com Planos de Saúde no Brasil e Comprometimento da Renda Domiciliar: Uma Análise da Pesquisa de Orçamentos Familiares – 2017/2018 in Cadernos de Saúde Pública - 2022: 38(3)]. Essa ocorrência atinge principalmente os estratos medianos e representa uma dificuldade extraordinária para os aposentados, que, geralmente, têm seus rendimentos reduzidos na inatividade e são obrigados a abrir mão dos planos quando mais precisam de assistência médica. Os índices de aumento liberados pelo órgão regulador e praticados pelos planos de saúde, em geral, não seguem a mesma lógica dos índices estabelecidos para os salários e a desvantagem para os usuários é visível e inquestionável. Por exemplo, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que mede a inflação oficial, fechou 2022 com uma taxa de 5,79% acumulada no ano. No período equivalente, ou seja, de maio de 2022 até abril de 2023, foi liberado para os planos ajuste da ordem de 15,5% para os segmentos individuais e familiares. No que refere à correção do salário mínimo, que vigorou até dezembro de 2022 no valor de R$ 1.212, o aumento real foi da ordem de 2,98% com o valor resultante de R$ 1.320 reais a ser praticado em 2023. Em suma, no cabo de guerra que envolve os interesses das administradoras dos planos e de seus usuários, certamente os últimos perdem a disputa na maioria das vezes.

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