
Elites e Defesa Pretoriana
José Mendes de Oliveira
03 de fevereiro de 2024
“As forças militares recebem salários muito bons para ficarem quietas. Tumultos, revoltas e pequenos estouros de guerra civil têm seu preço. (...). Portanto, os créditos ainda vão para as forças militares, o que não é nada produtivo, e áreas vitais do bem-estar social acabam abandonadas e se deterioram. É isso que chamo de decadência”.
(Fala de Hummin, personagem de Isaac Asimov em Prelúdio à Fundação, p. 84-85)
É quase senso comum ou, se preferir, um ditado muito popular, que a vida imita a arte e, há quem acredite no contrário, a arte imita a vida. Não importa a ordem dos fatores, mas o fato de que, por coincidência ou mera consequência da essência humana, muito do que existe na literatura pode parecer premonitório, as vezes confirma os fatos e, assim como na ficção científica, as vezes indica os caminhos do futuro. Fugindo da brincadeira televisiva, que transforma a série da engaçada família Simpsons em uma espécie de oráculo ou cartoon premonitório, a literatura nos serve pelo menos para mergulhar um pouco mais na forma de ser dos seres humanos, nos intrigados dilemas existenciais que nos perturbam e, sobretudo, a entender muito do que constitui a história e nossa trajetória neste mundo trágico.
Eu particularmente gosto de ficção científica, mas somente daquelas muito bem-escritas ou no mínimo instigantes, e, como certamente não é nada surpreendente entre os apreciadores, despontam entre minhas leituras os trabalhos de Issac Asimov e de Philip Dick (não me canso das ideias e da narrativa construídas em Do Androids Dream of Eletric Sheeps ou simplesmente Blade Runner como ficou conhecido na versão cinematográfica). Também não poderia me esquecer do filme Cidades das Sombras de Alex Provas, que consegui assistir no mínimo seis vezes sem me cansar. Porém, ultimamente, tenho me entregado de corpo e alma na leitura da Fundação, obra basilar de Asimov. Conheci na adolescência e juventude um Asimov muito preocupado com robôs, mas descobri mais recentemente, por desconhecimento e preguiça que não viabilizaram um encontro precoce, a Fundação como uma obra baseada, de acordo com os críticos, no clássico de Edward Gibbson – Declínio e Queda do Império Romano -, que confesso, cheio de vergonha, nunca consegui finalizar a leitura. Tenho uma versão da Companhia das Letras perdida em meio a bagunça de meu arremedo de biblioteca.
Mas deixando de lado a minha falta de competência, que atualmente é ajudada por um glaucoma renitente, que dificulta a leitura, não tenho desistido de ler meu Asimov com o espírito de um adolescente encantado com séries antigas como Perdidos no Espaço (Irwin Allen) e Guerra nas Estrelas (George Lucas), sigo em frente nas minhas leituras, que não é coisa pouca, porque envolve 7 volumes com não menos que 450 páginas em cada um deles. Aliás, não perdi um episódio de Perdidos no Espaço quando ainda era uma criança e mantenho cópias originais de Star Wars, ou seja, ainda que tenha caído no universo daqueles que acumulam velharias e filmes que podem parecer infantilóides, guardo os empoeirados DVDs. No entanto, não é devido à minha paixão por filmes de ficção (acabei de rever o divertido e cult Plano Nove do Espaço Sideral de Ed Wood), menos ainda em função das fantásticas trilhas sonoras que os tornam encantados e encantadores - a exemplo das fantásticas composições de Vangelis em Blade Runner (outra mania: gosto de trilhas sonoras!) -, que busco a ficção de Asimov como um pretexto para refletir um pouquinho sobre a realidade.
O que gostaria de lembrar, entre tantas coisas que podem ser exploradas na saga das duas Fundações criadas por Asimov – uma tecnológica e belicista (e colonialista) e a outra mentalista (que também não deixa de ser colonialista) -, além de que a sucessão de impérios e o exercício do poder jamais abre mão da guerra como um instrumento de domínio eficiente, bem como do expansionismo colonialista de controle dos menos capacitados tecnologicamente (e, por tabela, cognitivamente!), são os pequenos detalhes que revelam, por assim dizer, uma certa essência da humanidade e sua tendência em repetir comportamentos no transcorrer da história (pelo menos da história ocidental). Há em Asimov, inclusive, uma certa relação, quase que permanente, entre o mundo encantado dos mitos, das ideologias conduzidas para o domínio, e o uso de tecnologias viabilizadas pela ciência (ou pela tecnociência). Há mundo galácticos mais atrasados e mais avançados, assim como em nosso mundo onde há países atrasados, periféricos, dependentes e aqueles que detêm, mais que a produção de commodities para exportação, tecnologias avançadas que lhes permite poder, expansão territorial e domínio efetivo, ainda que ele se reduza ao exercício do poder de moldar (inclusive controlar mentes!) e impor valores (ou cosmovisões). O trecho em epígrafe, entre tantos outros, conduziu-me, mais uma vez, a pensar a nossa realidade latino-americana e, mais especificamente brasileira, quando Hummin, um protetor da figura destacada de Hari Seldon, uma personagem responsável pela criação de uma tal psico-história (uma tentativa estatística de prever o futuro da humanidade) e da própria Fundação, reflete sobre o papel e a relevância da violência policial para os governantes, no caso agentes da violência a serviço de um mundo imperial.
No Brasil do novo obscurantismo, que pode ser traduzido na fusão entre pensamento de extrema direita, cujo exemplo mais explícito é o bolsonarismo, hegemonia da religiosidade fundamentalista e atraso cognitivo, onde a histórica ausência do Estado se coaduna com os interesses de elites burguesas e pequeno burguesas autocráticas (e extremamente anacrônicas), malandras e excludentes (fundamento da decrépita república tupiniquim), as milícias e o narcotráfico passam a cumprir o papel de benfeitores de pobres (basicamente negros e pardos) frente a ausência do Estado (efetivamente de políticas pública) e o pentecostalismo com sua Teologia da Prosperidade (e agora também do Domínio!), bem como com a louvação do deus mercado (mediante os aplausos do neoliberalismo), deposita o peso do sucesso ou do insucesso na meritocrática responsabilidade do sujeito, nada mais resta que a tragédia da guerra hobbesiana e, nesse caso, como é corriqueiro na história, mas também elemento das narrativas literárias, as guardas pretorianas (agora no papel de guardiões dos oligarcas e dos plutocratas do mercado financeiro) passam a ser os cães de guarda dos estamentos burgueses. Para a população negra e parda, a maioria que constitui o Brasil das falsas imagens, do país grandioso um dia vendido pelos militares, o que resta é como sempre a repressão e a pressão de uma vida sem sentido, além da evidência da morte (ou da Pulsão de Morte!), que pode se concretizar na primeira esquina de forma muito violenta. A alternativa, caso o sujeito seja corajoso e vingativo o suficiente, é entrar para o crime organizado ou ser financiado por ele (como tantos questionáveis artistas do rap ou do funk de periferia), ou caso contrário resignar-se a ser pária com a marca do ferro da escravidão na testa. Dessa forma, é de uma maneira muito funcional – como diria um sociólogo conservador como Durkheim -, dobrando-se à lógica funcional do crime tolerado – afinal de conta a droga é produzida para o consumo das elites e dos segmentos médios nacionais e internacionais – o sujeito se encaixa, entra para o mercado de consumo, financia o sistema, entra para a política, se torna membro de uma igreja, filia-se a um partido político, lava o dinheiro sujo (principalmente do narcotráfico) em grandes projetos públicos angariadores de votos e a vida segue de forma funcional, ainda que possa ir deixando aleijados e mortos pelo caminho.
Nesse filme de terror, onde Jason (o cara chato da serra elétrica!) seria apenas um pobre psicopata mal-entendido, tudo pode ser válido e perdoado pelos poderes constituídos, basta que o crime esteja seguindo os interesses do deus mercado. Na ausência do Estado, esse deus despudorado e sem limites - regido pelo hedonismo dos nefastos - passa a ditar todas as regras, inclusive a abolição de todas elas, em prol de um individualismo egocêntrico, centrado exclusivamente na força e no poder do dinheiro, que faz coro afinadíssimo com essa que talvez seja, mais a gente não pode ter a certeza, a última fase do capitalismo, após a crise de 2008, em sua versão financeira. Para resumir, a questão da pobreza, do ressentimento, da vingança do crime e do banditismo sempre estiveram na origem do sistema capitalista, ela não é apenas uma questão meramente ideológica ou de cunho exclusivamente moral: faz parte da lógica estrutural do sistema. Muita gente hoje deseja ardentemente que a questão de classe, que a relação capital e trabalho seja coisa do passado, mas não é. Ela se renova a cada época com um discurso repleto de malevolência, de sedução, elegendo demônios em confronto com suas virtudes divinas e fazendo de uma questão concreta – que é a exploração do homem pelo homem – uma questão meramente moral, passível de ser resolvida com uma calça velha e desbotada, uma flor no cabelo, um abraço apertado ou com um culto ecumênico. Ledo engado. E os pretorianos estão sempre de plantão, prontos e dispostos a não só evitar revoltas e pequenas rebeliões, mas, no extremo do extermínio, o abalo do sistema. É por essas e outras que a gente vê, se assusta e se magoa, mas inevitavelmente não consegue deixar de ver propalados governos progressistas trazendo para a mesa dos comensais, além dos fraques e black-ties, as baionetas e coturnos. Faz parte do jogo, ainda que o jogo jamais seja acessível a você, sujeito mortal, sonhador e inocente, que nunca foi ou será convidado para essa festa. Para esse sujeito não há nada. Apenas, além de um país sem futuro, a inevitável certeza da morte.
