
Desafio Realmente Progressita
José Mendes de Oliveira
13 de abril de 2022
Li há algum tempo a biografia de Marighela elaborada por Mário Magalhães – Marighela: O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo -, e, embora já tenham se passado 54 anos desde a execução do guerrilheiro brasileiro, é impossível esquecê-lo como um homem autêntico e de fortes princípios. Algo muito raro hoje em dia e que desperta um pouquinho de inveja, não exatamente da figura história que é indiscutivelmente singular, mas de uma época em que o Brasil contava com lideranças aguerridas, corajosas e com forte senso moral. Marighela foi executado, assim como tantos outros que viram na luta armada a solução para a ditadura esparramada pela América Latina entre os anos 60 e 80, cada qual com sua importância particular, pensando em um país melhor e mais justo para os brasileiros. Podem acusá-lo de sonhador, utópico e romântico, mas jamais de um iludido, descompromissado com uma causa e com a possibilidade da construção de um país decente para os brasileiros (assim como foi Che Guevara para o conjunto do Continente). O Brasil de Marighela, vivido ou sonhado, já não é o mesmo depois de tantas décadas: desenvolveu-se bastante desde então e passou por bons e por muitos maus momentos nas esferas econômica, política, social e cultural, mas, não obstante as reformas levadas a cabo na sucessão dos governos, temos a triste impressão de que quase nenhuma mudança significativa ocorreu na estrutura de poder, que assegura a permanência das elites dominantes no país. A palavra elite me perturba um pouco, assim como me parece muito pretensiosa a utilização banalizada do conceito de burguesia, que soa como um tique nervoso no discurso esganiçado de estudantes universitários que se acreditam, além de autorizados intérpretes de Marx, companheiros de assentos entre girondinos e jacobinos quando se trata de algum enquadramento político-ideológico. Tenho muito desconforto com essas palavras, mas devo conter a minha própria boca porque também as utilizo, aliás com muita frequência e quase sempre sem o devido enquadramento teórico e histórico que exigem ou deveriam exigir. Porém, o que mais incomoda é a utilização dos conceitos como monólitos atemporais e indivisíveis. Acredito que no caso do conceito de elite (agora também associada ao atraso), por exemplo, deveríamos dar sempre nome aos bois. No que se refere às elites tupiniquins, o conteúdo não é tão simples e as vezes é muito divergente: encontramos aí uma miríade, que se estende da antiquada oligarquia rural mantida por inúmeros descendentes e ascendidos à condição de donos de latifúndios (entre eles talvez alguns abençoados com a sorte nas incontáveis loterias brasileiras), passando por industriais e comerciantes associados ou não com o capital estrangeiro até os mais sofisticados rentistas do mercado financeiro. A essas elites somam-se, além de diversas categorias de profissionais liberais, um segmento médio significativamente multifacetado, que pode ser amplo ou confrangido de acordo com as oscilações do capitalismo tupiniquim. Por simpatia ideológica, mas, sobretudo, pela necessidade de ação funcional nos cargos exigidos pela burocracia estatal e privada, essas figuras fazem coro na defesa de políticas autodestrutivas (reformas trabalhistas, reformas previdenciárias, entre outras). No conjunto, esse segmento pode ser compreendido como aquele que tem o rei na barriga (deixa de comer o pão para ter uma garrafa de Ballantines na mesa de centro da sala), mas de fato não possuem o pedigree social da plutocracia. Pode-se afirmar seguramente que esses sujeitos medianos não constituem uma classe, mas conjuntos muito diversos de indivíduos e grupos familiares que ascendem e descendem na estrutura social, ainda que muitos de nós sejamos tentados a defini-los erroneamente, do meu ponto de vista, como a classe média ou de acordo com o renitente anglicismo tupiniquim como os whites colors (outra mania mediana brasileira com seus enxertos da língua inglesa). Tomando a liberdade de brincar com uma sociologia de botequim e com muitos estereótipos, é possível definir esses sujeitos medianos como figuras angustiadas no afã de manter a posição social ou subir para o topo da pirâmide. Nesse caso o sonho e a ganância são livres e os meios de conquista muito diversos e nem sempre éticos. Em geral, essas figuras são muito conservadoras devido à condição social, e tendem a buscar posições ao centro nas oscilações do pêndulo político (e não raras as vezes na extrema direita), mas também são elas que aderem às causas, que, atualmente, as esquerdas brasileiras preferem chamar de progressistas. De qualquer forma, ainda que mais instruídas, são alvos fáceis das diversas formas de populismo, inclusive os praticados pela extrema direita. Portanto, nesse emaranhado que constituem os estratos medianos, encontram-se figuras reacionárias e progressistas, mas ambas, penso eu, alimentando o mesmo sonho de um dia chegar ao topo da pirâmide e, portanto, apegados aos valores que servem à verve do pequeno-burguês (ser proprietário e ser patrão!). Entre eles, muitos ainda acreditam na educação como dispositivo de ascensão social, e fazem das tripas coração para enviar e manter os filhos em escolas privadas, bem como assegurar-lhes uma cadeira nas universidades públicas, de acordo com o parâmetro de qualidade que utilizam. Os filhos desses pequeno-burgueses passam longos períodos dentro das cercanias dos centros acadêmicos, onde podem inclusive sonhar com revoluções (muitas vezes à revelia de seus pais) ou com a própria fama (muitos sonham em ser uma espécie de Elon Musk). Há entre eles, graças ao contorcionismo econômico dos genitores, aqueles que sequer se aventuram na utilização de um transporte público (coisa de ralé!) ou se curvam à curiosidade de visitar a periferia da própria cidade onde residem e/ou estudam[1]. Esses garotos e meninas bem-criados, depois de esgotarem as possibilidades de titulações oferecidas pelas academias, na opção de permanecerem no país, migram da universidade diretamente para o mercado de trabalho. Isso significa, geralmente, permanecer na universidade como professores e/ou pesquisadores ou lograrem uma posição dentro do serviço público mediante concurso ou por intermédio da ocupação de cargos de confiança, que não raras as vezes é uma conquista devida à rede de relacionamentos cultivados pela família entre políticos, militares e altos burocratas[2].
A sociedade brasileira é realmente complexa e não é possível atribuir todas as suas mazelas exclusivamente a um conceito abstrato de elites. Além de concretos e plurais, os grupos de elite agem de acordo com um mecanismo que envolve mais gente, ou seja, conta com o consórcio de diferentes segmentos sociais, que, por algum motivo e também pela crença na mobilidade social (fruto da enganosa liberdade capitalista), retroalimentam o sistema e o legitimam como o melhor dos mundos. Não é por menos que se pode constatar professores de economia (atualmente extremamente midiáticos), que atuam inclusive em universidade públicas, defendendo políticas neoliberais e de concentração de renda para favorecer os ricos. Pode-se alegar que isso advém da opção teórico-filosófica do indivíduo, mas, no caso brasileiro, esse argumento nem sempre é verdadeiro. Na maior parte das ocorrências, o emissor de um juízo conservador ou reformista se associa a algum tipo de benefício: vinculação direta ou indireta com partidos políticos, associação com políticos de determinada corrente ideológica ou simplesmente por prestar algum tipo de serviço ao mercado ou aos seus grupos de interesse. O mesmo acontece com o médico que observa a sua atuação em uma unidade pública apenas como um complemento de renda ou, quando muito e assustadoramente, como oportunidade para adquirir mais experiência com paciente precarizados, seriamente acometidos por doenças graves e disponíveis para qualquer tipo de intervenção ou experimentação[3]. A ação dos sujeitos no reforço do status quo, principalmente quando advém dos segmentos medianos destituídos de unidade e interesses objetivos de classe, torna o país resistente a mudanças estruturais e inviabiliza qualquer outro projeto diferente de um capitalismo dependente e simpático às amarras do imperialismo (seja ele norte-americano ou europeu). O maior exemplo dessa limitação encontra-se no sistema de coalizão alimentado pela crença de que sem a aliança com as elites nenhum partido progressista poderá atingir o poder. Nessa equação, a importância da maior parte dos eleitores desaparece e o jogo político é reduzido às tratativas institucionais e ao suporte das elites, particularmente no nível partidário, para compor forças e vencer os pleitos. Nesse contexto, programas de governo e agenda, tornam-se secundárias ou sequer são levados em conta como algo que mereça algum grau de relevância. Daí a evidência mais recente, que permite observar com clareza o comportamento dos partidos em função do pleito a ser realizado no final de 2022 no Brasil: antes de qualquer programa que possa orientar o voto do eleitor, o que vem à baila são os conchavos, promessas e alianças para garantir a vitória eleitoral, ou seja, a junção não ocorre por convergência ideológica e/ou programática, mas de acordo com a lógica da aglutinação dos votos regionais e nacionais, desde que harmonizados com interesses dos mais influentes no cenário econômico. No jogo tenebroso da vitória a qualquer custo, tudo é possível, inclusive a parceria com o diabo. E tudo isso é facilitado pelo esquema midiático, que transforma a política em mercado e o político em produto. Para consumir esse produto, além dos pobres alienados, encontram-se dispostos os estratos medianos, bastante suscetíveis a comprar marcas novas de sabonetes e desodorantes, mas também a imagem construída e falseada dos mais diversos políticos: do vereador ao presidente da república construídos em proveta e de acordo com o gosto conservador da clientela.
Os autodenominados partidos progressistas não fogem dessa lógica e talvez só se diferenciem na pequena desvantagem pelo fato de lidarem, de forma precária, com as mais novas mídias sociais e com as narrativas falseadas. Os embates na política e nos conflitos bélicos – a exemplo da contenda entre Rússia e Ucrânia – é atualmente, de fato, significativamente midiática, isto é, é também uma guerra de informações e de domínio cognitivo[4]. Nesse caso, mais uma vez, são os estratos medianos da sociedade os mais atingidos e controlados pelas versões elaboradas pelos meios de comunicação e mídias. Esse não é um fenômeno novo: historicamente as mídias de massa são muito eficientes nesses segmentos, que consomem de forma extraordinária não só mercadorias, mas também informações veiculadas pelas mídias hegemônicas, além dos valores pautados por elas. Esse é o público predileto das agências de propagandas. É ele que atribui grande importância para o uso de grifes, para a aquisição do último automóvel lançado no mercado e para as férias na Disneylândia (sonhos de consumo da pequena burguesia). Talvez seja de fato a porta de entrada para o colonialismo cultural e adesão aos interesses imperialistas (daí que se observa, sem contradições, sujeitos que se assumem de direita e de esquerda, que aceitam sem crítica o imperialismo estadunidense). O que não se pode ocultar e convém reiterar: os segmentos medianos não envolvem só adeptos da direita e da extrema direita. Por essa razão, não é surpreendente observar, entre representantes dos autointitulados progressistas tupiniquins, a falta de percepção da complexidade de um fenômeno como a guerra russo-ucraniana, que requer certamente a visão mais crítica em relação ao imperialismo norte-americano. Isso situa as pressupostas esquerdas brasileiras, de forma incontestável, na condição de agremiações tolerantes com a dependência externa do país ou facilmente seduzidas pelo discurso norte-americano do mundo polarizado entre democracias e autocracias. Por certo, não se pode exigir outra postura de todo uma geração que estabeleceu como modo de vida aprender a falar o inglês antes do português, fazer suas refeições no Mac Donald, assistir de forma acrítica à programação da Rede Globo, vestir-se como um teenager norte-americano, curtir joguinhos eletrônicos em substituição à realidade, ser bombardeado diariamente com hits musicais estrangeiros e viajar anualmente para Miami ou Orlando. Nesse aspecto, os autointitulados progressistas tupiniquins, ainda que menos miméticos e cafonas, são tão burgueses (ainda que liliputianos) quanto os filhos das verdadeiras elites brasileiras, faltando-lhes talvez um pouco mais de autenticidade no que se refere à legitimidade de quem mantém a posse do capital[5].
Voltando à questão eleitoral, o que nos incomoda profundamente é a crença, já há muito cristalizada nos segmentos médios, principalmente aqueles que utilizam o rótulo de esquerda ou de progressistas, de que a democracia brasileira só é possível com a benção dos ricos ou dos plutocratas da terrinha de Macunaíma (sempre que possível alinhados com os interesses norte-americanos). O que se observa atualmente no Brasil, faltando um pouco mais de cinco meses para o pleito eleitoral, é o gasto valioso do tempo na discussão para viabilizar as composições partidárias e entre lideranças de supostas tendências antagônicas. Em outras palavras, garantir mais uma vez alianças e coalizões, que caracterizam a política brasileira, em prol de assegurar o apoio de grandes produtores rurais, industriais, banqueiros e, agora também, de evangélicos influentes. A estranha associação do candidato petista com uma liderança histórica do tucanato de vocação neoliberal, bem como a discussão sobre a formação de federações sem o alinhamento de um programa mínimo, aparece para o eleitor que enfrenta problemas mais prosaicos – desemprego, fome, saúde, transportes, entre outros -, como uma treta marciana. A esfera do poder com seus políticos profissionais, mas também com os representantes orgânicos dos grupos de elite, torna-se um mundo muito distante das ruas, das roças e das favelas. Esse é o retrato de um processo político institucionalizado, que não consegue conversar com o cidadão na periferia das cidades, nem observar com nitidez e urgência que o mundo está mudando e que isso impõe às lideranças terceiro mundistas uma visão mais estratégica sobre o futuro. Enquanto isso acontece, embalados pela falsa crença de que o pleito de 2022 já está na caçapa, as esquerdas tupiniquins se esforçam para repetir o que já foi feito no passado com tristes consequências: abraçar os conservadores e garantir a todos eles que o futuro garanta prosperidade e não mudanças radicais que possam prejudicar os seus privilégios e o modo de vida (postura inquestionavelmente mediana). É assustador perceber que talvez estejamos, fora do contexto histórico devido, buscando reviver uma impossível Nova República com simulacros de Tancredo e Sarney (a história que se repete como farsa). Para o povo que não possui capital nem sequer renda ou alimenta o sonho de chegar ao topo da pirâmide – operários, pequenos agricultores, aposentados, precarizados, assalariados dos mais diversos setores e desempregados - não há promessas garantidas. E todos sabemos: sem reverter os desastres e destruições provocadas pelas políticas neoliberais dos últimos anos – a exemplo das reformas do trabalho, da previdência e as privatizações espúrias-, pouco poderá ser feito para a promoção de políticas sociais e de desenvolvimento que garantam um país mais justo e mais prósperos. Essa é uma tarefa que não se consegue fazer sem o suporte e mobilização da sociedade, incluindo a transformação dos valores do capitalismo selvagem cultivados com a sedução dos setores medianos da sociedade. É necessário compreender que os estratos mediados, seja à direita ou à esquerda, acreditam piamente na redenção da democracia liberal e têm ojeriza ao radicalismo que requer as grandes transformações. O acordo com as elites não é a garantia inquestionável da governabilidade e muito menos da boa governança. É apenas repetir mais do mesmo e viabilizar a reprodução do modelo excludente do capitalismo brasileiro, que não desagrada o pequeno-burguês, desde que ele possa ter a sua empregada negra ou parda, o seu carro caro na garagem, as sagradas aulinhas de inglês, os filhos no colégio particular, as viagens periódicas ao exterior e, lógico, a garrafa do Ballantines sobre a mesinha de centro.
O Brasil precisa ser resgatado ou submetido, por assim dizer, a um processo de escleroterapia capaz de eliminar uma veia antiga, doente e disfuncional, que já não alimenta o coração do país, mas o sacrifica com a contundência que poderá levá-lo à morte. A garantia da manutenção do fluxo de sangue para as elites retrógadas pode significar a manutenção do governo vigente, que, em uma segunda rodada, não medirá esforços para finalizar o seu projeto de destruição do país. Colocá-lo como pária no mundo já o fez, falta agora inviabilizá-lo de uma vez por todas na dinâmica das políticas e do comércio internacionais. Na hipótese de isso acontecer, talvez o país jamais consiga um lugar ao sol, porque não há momento mais propício, tendo em vista o esboço de uma nova ordem mundial com a hegemonia futura da eurásia. Precisamos de um governo que ajude a resgatar o Brasil colocando-o nos trilhos da civilização e, sobretudo, que seja competente para participar de uma nova ordem mediante a promoção do desenvolvimento nacional e continental, além de estabelecer relações comerciais sólidas e justas com o mundo que se configurará nas próximas décadas. Isso implica obviamente um alinhamento inteligente com os parceiros da América Latina, com a Rússia, com a China, com a Índia e com os países africanos em prol de um sul global independente, colaborativo e protagonista. As elites tupiniquins associadas aos interesses norte-americanos e da Europa anacrônica, que reforça internamente a estrutura do imperialismo estadunidense, precisam ser superadas, bem como o atraso dos estratos medianos que ainda acreditam nos fantasmas do comunismo e os associam à Rússia e a China, ambos países indiscutivelmente engajados na economia de mercado. O futuro exigirá empreendedores que realmente se identifiquem com o país e sua cultura e que sejam verdadeiros estrategistas para enfrentar o jogo de xadrez de um mundo multipolar. Infelizmente as elites brasileiras, bem como seus serviçais dos estratos medianos, ainda não são capazes de agir de forma autônoma: são imperialistas e não se envergonham em erguer o braço – a propósito como faziam os nazistas - frente à bandeira norte-americana. Certamente um mundo multipolar irá exigir elevada capacidade de negociação e não o mero entreguismo de nações colonizadas. Isso significa, entre outras coisas, olhar para a própria realidade, investir em seus próprios potenciais e se posicionar de forma inteligente no tabuleiro do xadrez internacional. A crença nos poderes do neoliberalismo e na globalização encontra-se nos seus estertores e levará para o túmulo quem estiver abraçado a ela.
Portanto, mais que frentes progressistas motivadas para a derrubada do bolsonarismo – que não deixará de existir ainda que um governo de esquerda ou mais apropriadamente de centro esquerda saia vitorioso em 2022 -, é necessário partidos com uma agenda ou programa que reflita as necessidades reais do Brasil e o seu posicionamento no cenário mundial nas próximas décadas. A integração latino-americana e o fortalecimento do Mercosul, bem como dos BRICS, são exemplos de medidas que não podem passar ao largo. Ademais é de suma relevância resgatar a capacidade para o investimento em políticas de desenvolvimento econômico e social. O mundo multipolar virá regido não só pela autodeterminação dos povos e pelo equilíbrio de poder entre as nações, mas por elevado nível de autonomia na produção de conhecimentos e tecnologias. Com o bolsonarismo vigente o Brasil regrediu em décadas e precisa voltar aos trilhos. Por essa razão, é preocupante as alianças com os representantes de elites que almejam apenas manter o status quo, acreditando nos falsos valores norte-americanos e nos mitos da Guerra Fria. A democracia ocidental precisa ser repensada e, com urgência, também as democracias terceiro mundistas. Os autointitulados partidos progressistas tupiniquins precisam, também, amenizar o discurso identitário e focar um pouco mais nas questões nacionais e de geopolítica. Vencer o bolsonarismo é necessário, mas também viabilizar uma civilização com elevado nível instrucional, com bem-estar social, com independência política e econômica sem desprezar o engajamento no desenvolvimento mais justo e igualitário do sul global, constitui garantia de que valores humanistas e de respeito as diferenças possam ser plantados em solo fértil. Isso significa investir em cidadania e na mudança de mentalidades, ou seja, traçar projetos para ir além da ampliação dos setores medianos ou da inserção de sujeitos no mercado de consumo, que no oscilar do pêndulo político e no delírio da conquista do topo da pirâmide não pensarão duas vezes para abraçar as aventuras do fascismo ou atender ao chamado atroador da barbárie.
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[1] Recordo-me de meus dias na Universidade de Brasília, entre as décadas de 70 e 80, quando conheci colegas estudantes, geralmente oriundos de outros estados, que passaram oito anos, entre graduação e mestrado, sem uma única vez visitar as várias localidades do Distrito Federal, então definidas como cidades satélites. Essas pessoas concebiam, e espero que hoje já não seja mais assim, o Distrito Federal como o Plano Piloto de Niemeyer e Lúcio Costa (aquela bizarra figura do avião na prancheta do arquiteto), além do setor de penínsulas com suas casas luxuosas e mansões. As favelas e a pobreza nas redondezas ou nos satélites da capital federal eram desconhecidas, favorecendo a visão distorcida de Brasília como uma cidade regida pela boa vida de políticos e burocratas.
[2] A propósito, conheci poucos, a não ser mestiços (a maioria parda) e alguns negros brasileiros (os negros estrangeiros faziam o possível e o impossível para se diferenciarem com vestimentas e adereços), que estiveram trabalhando antes do ingresso na universidade, e que lutavam para manter o trabalho durante a vida acadêmica. Além do tradicional funil do vestibular, que viabilizava poucas vagas para muitos concorrentes, na minha época de estudante os cursos eram, em quase a sua totalidade, oferecidos em horários diurnos. Isso foi motivo para que muitos colegas, que conheci, abandonassem os cursos por não conseguirem harmonizar estudos e horários de trabalho, ainda que a Universidade buscasse alternativas mediante a oferta de diversos tipos de bolsas (bolsa-trabalho, bolsa-artes, bolsa-esporte, serviços de auxiliares de pesquisa, serviços de monitoria etc.), além de outros suportes como o preço subsidiado das refeições no restaurante universitário para alunos carentes.
[3] Certa vez, em conversa com um médico muito bem-sucedido, com consultório próprio e clientela de padrão socioeconômico consolidado, perguntei por que consumia parte do seu tempo atendendo em um hospital público? Quis saber se tal procedimento era fruto de compromisso social ou retribuição à sociedade por sua formação em uma entidade pública. De acordo com sua resposta, era exatamente isso, mas não só isso: a clientela no hospital público permitia a ele enfrentar situações desafiadoras, frente a quadro de doenças agravadas, o que dificilmente conseguiria com sua clientela mais sofisticada e mais bem cuidada que frequentava seu consultório privado. Em suma, mais uma oportunidade de experimentar e aprender um pouco mais com sujeitos resignados e clamando por socorro.
[4] O processo é idêntico ao que ocorreu no Brasil a partir de 2014 e que permitiu a vitória do bolsonarismo nas urnas em 2018 Os setores medianos foram facilmente conduzidos ou orientados pela mídia hegemônica e pelas mídias sociais por intermédio de fake news, reforços de preconceitos, manipulação da pauta de costumes e uso indiscriminado do combate à corrupção, que responde adequadamente aos valores conservadores dos estratos médios. A mesma coisa ocorre atualmente com a construção da russofobia pelas mídias ocidentais regidas pelos EUA e seus aliados europeus.
[5] É impressionante observar que o cidadão médio brasileiro demonstra mais medo do comunismo, ainda que ele não exista como prática concreta em qualquer parte do mundo contemporâneo (assim como não existe e nunca existiu o capitalismo da livre e plena concorrência), que os próprios grupos de elite. A russofobia ocidental e o medo da hegemonia chinesa no comércio internacional associam-se claramente, ainda que não revelado explicitamente, com o velho temor ao comunismo. Isso ocorre, inclusive, entre sujeitos medianos formados academicamente e bem informados. Torna-se evidente, nesses casos, que a questão não se reduz à carência de conhecimentos, mas à orientação ideológica em função de um interesse muito significativo para um pequeno-burguês, ou seja, o sonho irrenunciável do topo da pirâmide.
