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O Fisco e o Chute no Cachorro Morto

José Mendes de Oliveira

14 de abril de 2023

A celeuma em torno da decisão e do anúncio da Receita Federal, expedido no dia 11/04/2023, declarando o propósito de pôr fim à isenção de imposto de importação para encomendas no valor de 50 dólares, teoricamente com o objetivo de impedir a sonegação por empresas de comércio eletrônico, não é uma questão menor. Por quê? Porque carrega um peso simbólico extraordinário e reforça uma evidência que salta aos olhos de qualquer cidadão brasileiro: em se tratando de tributação, o malho bate forte nas costas dos mais pobres e dos setores medianos da sociedade. As empresas que serão atingidas com a decisão são as varejistas asiáticas como a Shein, AliExpress e Shoppe e, obviamente, os pequenos comerciantes e consumidores que movimentam esse comércio, geralmente na venda e compra de eletrônicos, calçados e roupas. O pretexto de socorrer os comerciantes brasileiros, que importam da China e cobram preços exorbitantes pelas mesmas mercadorias, comercializadas diretamente pelos chineses por preços mais atrativos, parece ser um discurso nacionalista míope e muito pouco sincero, além de deixar perplexos aqueles que observam que parte considerável desses comerciantes se antagoniza com o atual governo e abraça as causas do bolsonarismo.

Em verdade, o governo da frente ampla, particularmente na vertente petista, dá uma forte demonstração de uma dificuldade histórica dos autodenominados partidos progressistas para lidar com a questão tributária, ainda que devessem ser os primeiros a enfrentar o problema de forma resoluta, por tratar-se de uma seara onde a injustiça na terra de Macunaíma é gritante. É sobejamente conhecido que, no Brasil, ricos possuem vários privilégios em se tratando da questão tributária. Pois bem, a medida estabelecida com olhos arregalados para a arrecadação de até 8 bilhões de dólares ao ano, seguindo-se a orientação da própria estrutura do novo arcabouço fiscal estabelecido pelo governo, parece ser algo muito pobre frente ao desgaste político. A medida atinge diretamente a parcela inferior dos estratos ou camadas medianas da sociedade (assalariados entre 3 e 10 salários mínimos), que busca o comércio eletrônico como meio de aquisição de bens e, nos casos dos pequenos vendedores que utilizam a internet, de composição da renda familiar. Aqui ocorre o reforço de mais uma evidência: os referidos partidos, ainda que constituídos por muitas pessoas oriundas dos estratos medianos, parecem não conseguir dialogar com esses segmentos.

O mais complicado é que essa faixa da sociedade tem aderido fortemente aos apupos da extrema direita. É ela que se encontra massacrada com inúmeras dívidas nos bancos, alguns nas mãos de agiotas e muitos nas listas de devedores das administradoras de cartões de crédito, mas é ela também que cultiva preconceitos e considerável conservadorismo, que busca cada vez mais o conforto da teologia da prosperidade, o discurso apelativo de pastores e que está disposta a odiar ainda mais quem a despreza. Ao contrário das faixas mais carentes da sociedade, para as quais são desenhadas políticas compensatórias, os segmentos medianos, geralmente, assumem os custos elevados dos planos de saúde, o aluguel, o financiamento imobiliário em bancos públicos ou privados, o custo elevado da mobilidade urbana, bem como os gastos a cada ano mais elevados com a educação. Ademais, são os assalariados das camadas médias que sentem o peso do imposto de renda na fonte, recolhido de forma compulsória e irremediável. Tudo isso, no final das contas, pesa muito no momento em que se percebe que determinados tipos de ações do poder público soam como ações punitivas. Essas ações abarcam desde o controle do uso da TV Box em resposta aos clamores do protecionismo das TVs por assinatura até a aquisição de bens no e-commerce. Pode parecer besteira, mas não é, porque enerva e indigna quem olha para o lado e observa grandes fortunas mantidas incólumes, ricos esbanjando aviões, lanchas, jet-ski, mansões luxuosas, grandes dividendos não tributados e pouquíssima retribuição à sociedade pela riqueza acumulada.

Não haveria tanta indignação se o sistema fosse justo e equânime para todos, mas efetivamente essa não é a situação. No Brasil, a injustiça tributária faz com que os trabalhadores assalariados e pobres paguem mais impostos, ao passo que proprietários e aplicadores contribuem muito menos. De acordo com dados registrados pelo Observatório da Equidade em 2009, frente à imensa carga de tributos sobre bens e serviços, as pessoas que ganhavam até dois salários mínimos em 2004 gastaram 48,8% da renda em pagamento de tributos. A participação das famílias com renda superior a 30 salários mínimos correspondia, no mesmo período, a apenas 26,3%. O quadro torna-se ainda mais assustador quando se observa que dos 33.8% do PIB arrecadados em 2005, apenas 9,5% do produto retornaram à sociedade na forma de investimentos públicos em educação, saúde, segurança pública, habitação e saneamento[1]. Embora decorridos cerca de 14 anos desde o registro desses dados, não houve alteração e o sistema permanece muito desigual[2]. Embora o atual governo anuncie a promessa de uma reforma tributária visando as grandes fortunas, as medidas mais imediatas, a exemplo da taxação do e-commerce, quase que exclusivamente o de origem asiática, fornece indícios de que talvez a promessa não se cumpra. Não é segredo para ninguém que mexer com os interesses do topo da hierarquia não é tarefa fácil e requer determinação e coragem. Esses atributos nem sempre estão presentes em um sistema de arranjos e coalizões como o brasileiro. No frigir dos ovos, o lado mais fraco fica a ver navios, o que certamente alimenta ainda mais a desconfiança. Contribui para isso o festejo de varejistas brasileiros em relação à decisão governamental, muitos adeptos do bolsonarismo, que não produzem coisa alguma, importam da China e revendem muito caro e, ainda assim, reclamam o tempo todo da concorrência injusta.

Tudo bem, pode-se argumentar em prol da legalidade e da moralidade, mas não fica muito adequado desejar firmá-las na defesa do interesse nacional. Por essa via o discurso moralista será sempre parcial. A maior parte das mercadorias adquiridas em sítios de empresas asiáticas não é produzida no Brasil, destacando-se os eletrônicos. É falacioso querer defender uma indústria nacional que não existe. Em verdade, o Brasil enterrou-se em um triste processo de desindustrialização a partir da década de 1980, quando o Estado diminuiu a sua participação na alavancagem da industrialização, que nunca foi encarada de forma autônoma e responsável pelo setor privado. Entre as décadas de 1950 e 1980, quando o Estado fez investimentos de grande vulto, a participação da indústria no PIB brasileiro foi significativa (em torno de 20%), mas isso foi se arrefecendo e, coincidentemente, na medida em que se expandia o mercado financeiro e a adesão ao neoliberalismo na terra de Macunaíma. Portanto, parece razoável, antes de defender a tal indústria nacional, que a ressuscite e a faça produzir de fato. Para tanto, parecem ser imprescindíveis os aportes do Estado, que atualmente encontram inúmeras barreiras entre as próprias elites nacionais, incluindo a empresarial, que prefere a economia do rentismo em detrimento de uma economia da produção. Em suma, pode-se estabelecer variados argumentos para defender a decisão do governo na taxação do e-commerce de origem asiática, mas é difícil não perceber que, do ponto de vista político, a medida representa um grande desgaste e talvez muito desproporcional ao valor da arrecadação almejado. Enquanto isso, a pergunta permanece: quando as grandes fortunas serão tributadas na terra de Macunaíma? Quando o brasileiro poderá realmente constatar que o sistema tributário de seu país é minimamente justo? Enquanto isso, se a tendência for realmente a de chutar cachorro morto, talvez a chamada baixa classe média não se sinta muito motivada a abandonar o extremismo da direita e, de forma muito curiosa, acabe apoiando pelo menos uma fração do setor de confecções nacional, que certamente não se sente ameaçado pela concorrência asiática, ou seja, aquele que se dedica a vestir de verde e amarelo os patriotas enraivecidos e transloucados.

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[1] Conferir: https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=1240:reportagens-materias&Itemid=39

[2] Conferir:

https://fenafisco.org.br/02/09/2022/brasileiros-de-renda-media-pagam-mais-imposto-de-renda-do-que-os-super-ricos/

Sérgio Wulff Gobetti & Rodrigo Octávio Orair. Progressividade Tributária: A Agenda Negligenciada. Texto para Discussão. Brasília: Rio de Janeiro. Ipea, 2016.

Sérgio Wulff Gobetti. Tributação do Capital no Brasil e no Mundo. Texto para Discussão. Brasília: Rio de Janeiro. Ipea, 2018.

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