
A Indignação e a Sátira
José Mendes de Oliveira
06 de julho de 2025
A teatralização na política não é um fenômeno novo na história do mundo ocidental e não deve ser considerada uma ocorrência típica das sociedades urbano-industriais modernas. Pode-se admitir que esteve presente no universo dos césares romanos, particularmente na fase de descensão do Império, bem como nas inúmeras e conhecidas performances de populistas e demagogos no decorrer do séc. XX, destacadamente nos movimentos e regimes autoritários que ascenderam entre 1919 e 1945 na Europa. Nesse último caso, contribuíram significativamente para a construção dos espetáculos as já conhecidas e estudadas mídias de massa, tais como os jornais panfletários, o rádio, o cinema e a televisão.
Na atualidade, esses veículos perderam o protagonismo para as mídias digitais, mas o propósito das encenações do poder manteve-se sólido e com uma amplitude extraordinária, quando se considera a versatilidade viabilizada pelos recursos da informatização, destacando-se a mais recente contribuição da inteligência artificial. A possibilidade da construção de imagens e sons artificiais é extraordinária e a velocidade na veiculação da mensagem, bem como a sua abrangência, é no mínimo impressionantes. Para o bem ou para o mal, esse recurso passou a integrar os processos políticos mundo afora, como ferramenta de propaganda, de cooptação e de embate entre adversários e entre facções.
Há pouco tempo, o domínio desses recursos parecia ser exclusivo da extrema direita, que abusou na utilização das mídias virtuais particularmente nos EUA e aqui no Brasil. Entretanto, com o advento do imbróglio do IOF, o governo lulopetista lançou mão de peças publicitárias com base nas IA para enfrentar a derrota acachapante do Decreto nº 12.467/2025 no Congresso Nacional. Derrota essa que contou com a colaboração de deputados da sua própria base de sustentação, que, mais uma vez, demonstraram sem timidez a quem ou a que devem fidelidade irrestrita. Não obstante a distorção dos termos do decreto, escondida na divisa do “nós contra eles” ou do “povo contra os bilionários”, o lulopetismo mostrou, pela primeira vez, competência no uso das novas mídias para se comunicar com a população.
Mas por que distorção? Porque o caloroso grito dos pobres contra os ricos, ainda que pudesse ser justo e verdadeiro, não traduz com precisão o espírito do revisado decreto, que se busca obliterar no fervor da campanha. Em prol da verdade, há que se admitir que a primeira versão do texto, publicada com o nº 12.466/2025, propunha a partir de 22/05/2025 a revogação do inciso III do caput do art. 15-B do Decreto nº 6.306 de 14/12/2007, que previa alíquota zero do IOF nas operações de câmbio, de transferências do e para o exterior, relativas a aplicações de fundos de investimento no mercado internacional. Essas operações estariam sujeitas, a partir de então, a alíquotas de 3,5% na saída e de 0,38% na entrada de recursos.
Entretanto, de acordo com diversos veículos de comunicação, pressionado pelos poderosos do setor bancário e das agências de investimento, o governo recuou no mesmo dia em que levou a público o seu decreto, mediante a publicação de uma nova versão (Decreto 12.467/2025), na qual manteve a alíquota zero para as aplicações de fundos de investimento no mercado internacional, além de preservar na mesma condição o pagamento de juros sobre capital próprio e dividendos. Em outras palavras, uma parcela dos ricos brasileiros marcou presença enérgica, como sempre, na mesa das decisões. Portanto, o discurso de pobres contra ricos é no mínimo falacioso, para não sermos indelicados e defini-lo abertamente como mentiroso.
A leitura da versão derrotada no Congresso permite perceber que as medidas propostas não se restringem a taxar bilionários, como destacam as campanhas do lulopetismo, mas afetam também segmentos mais populares e certamente uma parcela dos estratos medianos da sociedade, além de micro e pequenas empresas. A taxação da previdência privada, do câmbio e compras no exterior - inclusive no que se refere a remessas sem fins de investimento -, da transação com cartão de crédito e do crédito para empresas, abarcam em verdade uma quantidade significativa de setores da sociedade que não se inserem necessariamente na categoria dos bilionários ou muito ricos, que corresponde aproximadamente a 10% da população. Essa turma, certamente, permanece intocada e comemora as sucessivas vitórias entre drinques e gargalhadas.
Então por que a birra do Congresso no que se refere a esse famigerado decreto? Do nosso ponto de vista é fruto da sanha eleitoreira ou da corrida para o Palácio do Planalto em 2026. Não é uma questão de princípio ou de agenda ideológica liberal, que se opõe intransigentemente à cobrança excessiva de impostos. O negócio é criar obstáculos, extenuar e nocautear o governo em uma corrida eleitoral que já se encontra em curso. O governo obviamente reagiu, mas de forma a não deixar a passagem da conciliação completamente obstruída: não exonerou seus aleivosos ministros e, mais uma vez, foi em busca do STF para defender seu direito constitucional de emitir decretos e decidir sobre a política do IOF, ainda que não possa e não deva fazê-lo com o intuito arrecadatório. A decisão do STF é, como já sabemos, por constituir uma mesa de conciliação.
A veia conciliatória do lulopetismo pulsa forte e mais uma demonstração de sua falta de energia para o enfrentamento de situações conflituosos pode ser observada na reação às críticas e sátiras, que pipocaram nas redes sociais, motivadas ou não pelas próprias iniciativas do governo, e colocaram no foco o fisiologismo do Centrão e a mercancia política dos presidentes das casas legislativas. Efeito colateral ou não, as inúmeras mensagens e imagens de tom jocoso se espraiaram, e uma parcela dos brasileiros encontrou uma forma de expressão para retirar a espinha encravada na garganta. Para além das conveniências parlamentares, que fundamentam a defesa das elites, do status quo e do próprio corporativismo, parcela do povo brasileiro alimenta um misto de decepção e indignação, que de uma forma ou de outra será canalizado em 2026 para o bem (mais consciência política) ou para o mal (adesão à demagogos e populistas).
No entanto, retomando a questão do perfil conciliatório, não foi surpreendente que dentro de uma mesma semana, o líder do governo na Câmara, a ministra da SRI e o presidente interino do PT tenham saído de forma explícita ou implícita na defesa do presidente da Câmara, que se tornou o centro das sátiras, particularmente por ter submetido o famigerado decreto do IOF a uma votação na calada da noite. O governo da já falida Frente Ampla não quer enfrentamentos e também não abre mão dos fundamentos de sua política econômica. Em verdade, a corrida atrás do IOF só tem um propósito: arrecadar para manter a finalidade do déficit zero previsto no arcabouço fiscal. Essa algema que o lulopetismo fabricou e utiliza em seus próprios pulsos, em mais um pacto com as elites brasileiras, pode ser talvez o fator suicida de sua irremediável profligação.
De qualquer forma, como diz o dito popular, a males que vêm para o bem. Os processos sociais não são totalmente previsíveis e, não raras as vezes, efeitos não esperados são gerados. A reação indignada do governo, traduzida em seus primeiros vídeos em que defende a pretensa taxação dos ricos, pode ter aberto uma porta para que segmentos da sociedade brasileira, até então paralisados pela falta de esperança e pela indignação, manifestem o seu desconforto. A crítica ao Congresso e aos homens públicos, ao contrário do que possa querer certo canal de TV hegemônico, é um direito do cidadão, além de elemento essencial da prática democrática. Faz parte do exercício da cidadania observar, cobrar e recriminar as ações dos mandatários públicos, sobretudo quando elas destoam da ética e do decoro exigidos na gestão da res publica.
Por fim, todo esse imbróglio do IOF destrói um argumento enganoso, que é utilizado com frequência pelo próprio governo: a falta da correlação de forças. O exemplo de Gustavo Petro na Colômbia, que governa em contexto mais adverso que o brasileiro, tem sido evitado por muita gente que engrossa as fileiras de apoio ao lulopetismo. Porém, de fato, quando não se tem o suporte parlamentar, nem o apoio da mídia hegemônica e no entorno presencia-se o permanente assalto das elites, a melhor alternativa é jamais abandonar a sua base e o conjunto dos eleitores. Enclausurar-se nas tratativas palacianas e tomar decisões de forma tecnocrática em prol de elites degeneradas só retroalimentam a postura de sujeição e rendição. Os recentes movimentos nas redes parece ser um sinal muito claro, desde que não apenas uma teatralização dissimuladora, de que é possível atrair grande parcela do chamado povo em prol da governabilidade, principalmente quando o motivo dessa atração é a defesa genuína da justiça social e dos direitos do cidadão.
