
Por uma Ordem Multipolar
José Mendes de Oliveira
14 de março de 2022
A articulista Irina Alksnis publicou na Ria Novosti, no dia 11 de março de 2022, um interessante artigo intitulado O Ocidente Ensinou à Rússia uma Dura Lição: É Hora de Aproveitar[1], que deveria servir de base para a reflexão de quem não se sente seduzido facilmente pelas interpretações maniqueístas, muito menos pela religiosa demonização dos russos, que ocorre de acordo com o conservador fundamentalismo norte-americano. Do que se trata? Alksnis analisa as consequências do êxodo em massa dos negócios estrangeiros da Rússia no que se refere à destruição de dois mitos das economias ocidentais. Em primeiro lugar, é destruída a crença de que as empresas multinacionais são líderes e impulsionadoras da globalização acima dos interesses e do controle dos estados-nação, ou seja, parece ser falsa a ideia muito difundida de que o capital não tem pátria nem fronteiras. Em segundo lugar, evidencia-se que as grandes empresas transnacionais, particularmente as norte-americanas e europeias, não se orientam exclusivamente pelos benefícios econômicos, mas que se curvam quando necessário às ordens de interesses geopolíticos de países ou de blocos de poder, ainda que tal situação possa envolver a perda de mercados e de bilhões de dólares. Em outras palavras, tais empresas podem submeter-se, sem conflito de interesses, em atos de guerra ou em processos geopolíticos, que não se restringem à manutenção do poder econômico. Pode-se admitir que, em última instância, a ira norte-americana pretende atingir a China e impedir a sua expansão econômica e, para tanto, lança mão da Ucrânia como carne de canhão, bem como do expurgo da Rússia do comércio internacional, mas não se pode desconsiderar os interesses mais amplos do Império, que inclui a dominação cultural e o protagonismo como polícia do mundo.
A quebra desses mitos, apontados por Alksnis, abala significativamente duas defesas do liberalismo clássico legadas pelo neoliberalismo contemporâneo, repetidas no Brasil como mantras por empresários e economistas (não só neoliberais!), e tal ocorrência deveria ser observada com atenção pelos países emergentes: 1º) os investimentos estrangeiros são bons em qualquer circunstância porque injetam dinheiro na economia nacional e, dessa forma, estimulam o desenvolvimento e 2º) não se deve estabelecer restrições para os investidores porque reduzem o desejo de investir. Os dois argumentos são indiscutivelmente falaciosos porque, em geral, os interesses desses investidores não coincidem com as necessidades das populações locais ou nacionais. O que se evidencia de forma pedagógica na guerra econômica travada contra a Rússia - e todos os países emergentes deveriam aprender com o exemplo -, é a necessidade urgente de revisão, como admite Alksnis, da própria abordagem estatal ao investimento estrangeiro. É bem verdade que a política de sanções, embora cruel e questionável do ponto de vista do direito internacional e das práticas humanitárias, é utilizada há muito tempo pelos EUA e, em geral, contra adversários mais fracos: basta conferir os casos de Cuba, Iran e mais recentemente o da Venezuela. A perversidade encontra-se no fato de que os dirigentes estadunidenses podem provocar conflitos em todo o mundo e jamais são sancionados, ou seja, desrespeitam regras internacionais, fazem pouco caso das decisões da ONU e alimentam uma máquina de guerra típica das nações imperialistas. Por diferentes motivos essa hegemonia, que parece estar em seus estertores já há algum tempo, encontra o respaldo da decrépita Europa, que há muito tempo não consegue pensar com a própria cabeça e andar com as próprias pernas. O que se pode constatar de diferente no caso russo é que não se trata de Cuba ou da Venezuela, mas de um país com arsenal bélico que provoca constrangimentos. Portanto, a política de sanções tornou-se ainda mais útil aos propósitos ocidentais, ou seja, viabiliza uma guerra efetiva sem necessariamente levar ao uso extremo das ogivas nucleares. Porém, a situação criada por esse tipo de política é evidentemente precária, ou seja, não elimina definitivamente a possibilidade de uma hecatombe.
O que de fato é pedagógico no conflito atual é que, além das revoluções coloridas e das guerras hibridas, o Império estadunidense deve lançar mão, cada vez mais e certamente com o apoio de seus aliados da OTAN, dos seus braços econômicos para inviabilizar a economia de nações adversárias (ou rebeldes) e consequentemente desestabilizá-las na pretensão de levá-las à lona. Isso é facilitado não só pela hegemonia do dólar como lastro no sistema monetário mundial, pelo controle do sistema financeiro, mas também pela articulação política de empresas transnacionais de origem estadunidense ou europeia, que abandonam mercados da noite para o dia, causam desempregos e infernizam as economias nacionais. A ideia de que empresas transnacionais não têm cara nem interesses políticos localizados nunca teve muito sentido e agora muito menos: quando necessário elas atuam de forma competente como mecanismos de coação econômica e política. Fica mais uma vez evidente que o discurso do livre mercado sempre foi falacioso e que o capital, quando necessário, tem lado e conta com o suporte dos recursos públicos disponíveis e vice-versa. Isso vale não só para as políticas de protecionismo, de defesa de determinados monopólios e indiscutivelmente no caso das sanções ou guerras econômicas. Portanto, a sua expansão não deve ser vista como algo natural e inofensivo, mas, sobretudo, em termos do mal que pode causar à segurança econômica nacional. No auge do domínio neoliberal, o que mais se ouviu nas últimas décadas, destacadamente nas economias emergentes, foi a defesa quase que unânime da retirada das restrições ao capital estrangeiro, além da privatização do patrimônio público nacional para empresários e grupos de investimentos provenientes do exterior. A guerra econômica contra a Rússia, como destaca Irina Alksnis em sua matéria, de forma muito pedagógica dá razão aos que, até então, preocupavam-se com as questões de segurança nacional e eram desdenhosamente definidos como paranoicos ou ignorantes na compreensão de como funciona a economia mundial. Em verdade, a política de sanções dos EUA e dos seus aliados tem demonstrado que, em se tratando de mercados internacionais, pouco valem as regras e que tudo é permitido para arbitrariamente expropriar, inviabilizar e destruir as nações que não são do agrado ou que ousam corajosamente questionar a hegemonia do Império.
Além das sanções viabilizadas concretamente pelo boicote das empresas transnacionais, o conflito tem sido também uma excelente oportunidade para verificar a coerência do mundo ocidental em relação aos princípios da democracia que apregoa para os outros, mas que solapa sempre que conveniente e necessário à defesa de seus próprios interesses. A história da América Latina, bem como do Oriente Médio, carrega as marcas das múltiplas vezes em que o Império abusou na promoção de golpes de estado e instalação de governos tirânicos, mas alinhados com seus interesses[2]. Isso não é passado ou lorota da Guerra Fria, é uma prática sistemática do domínio estadunidense e de seus aliados da decadente Europa. Atualmente, o que se evidencia, além da promoção do preconceito étnico, expresso de forma mais visível nas manifestações da russofobia, é a interdição despudorada da liberdade de expressão com a censura aos meios de comunicação da Rússia. Não se trata apenas de uma questão legítima de proteção em relação à contrainformação em estado de guerra, até mesmo porque o conflito ocorre aparentemente entre Rússia e Ucrânia, mas de controle midiático em função da desestabilização de outras nações. Foi ainda ontem que a Ucrânia experimentava a sua revolução colorida, manipulada com prazer pelos EUA, assim como na América do Sul o Brasil assistia a ascensão da extrema direita com o abundante uso do lawfare e das fake news. A utilização da lei e dos procedimentos legais para perseguir inimigos políticos foi abertamente inspirada pelo Foreign Corrupt Practis Act estadunidense, além de contar com o apoio de instâncias do Estado norte-americano[3]. As mídias sociais apoiadas no providencial direito à expressão permitiram, por sua vez, o uso abusivo da mentira e da violência simbólica. As campanhas agressivas da extrema direita tupiniquim não seriam concebíveis sem o suporte de mídias como WhatsApp, Facebook, Instagram e Youtube. Esses empreendimentos milionários são propriedades de norte-americanos e, atualmente, respondem assertivamente ao conjunto de sanções praticadas contra a Rússia[4]. Em verdade, a expansão da influência norte-americana pelo mundo envolve não só a imposição tecnológica, hoje contraposta e ameaçada pela crescente capacidade de produção dos chineses[5], mas também o domínio cognitivo e dos hábitos[6]. O domínio das mentes e dos valores é realmente uma prática eficiente do neocolonialismo: não se trata apenas do exercício imperialista do poder sobre a economia e a política, mas também de sua manutenção por intermédio da imposição cultural e do controle midiático[7]. Por essa razão, as sanções também atingem, de forma que nos parece absurda, os meios de comunicação, as artes, os esportes e até a culinária.
O aprendizado da Rússia talvez devesse ser o aprendizado de todos as economias emergentes a partir de agora. O que se descortina é a possibilidade de uma nova ordem mundial propícia à pluralidade. Em se tratando de relações internacionais, trata-se de admitir e buscar os meios para a edificação de uma ordem multipolar, que seja minimamente avessa às práticas imperialistas ainda vigentes. Para tanto, deve-se respeitar de fato não só a autodeterminação dos povos, mas estabelecer sem hipocrisias o respeito às regras internacionais e às instâncias institucionais incumbidas de efetivá-las. Nesse mundo, ainda utópico para muita gente, mas plenamente viável ou possível, não caberia organizações como a OTAN, cujo conceito se esgota na existência de uma Guerra Fria já superada, nem a hegemonia castradora do dólar. Ademais, tornam-se necessárias organizações internacionais, a exemplo da ONU, com instâncias de participação mais equitativas, equilibradas e respeitáveis em suas decisões. Não tem sentido a existência de um Conselho de Segurança em que um único país ou um bloco possa estabelecer de forma hegemônica o poder de decisão em função de seus interesses, além do fato de que a agenda não deveria ter como ponto focal a guerra, mas destacadamente a solução pacífica e negociada dos conflitos[8]. O embate russo-ucraniano também traz como aprendizado a necessidade de resgatar-se alguns princípios, que foram considerados anacrônicos com a globalização, mas que se revelam cruciais para a segurança nacional e para o equilíbrio de poder entre as nações. Entre eles se destaca, além da retomada urgente das políticas sociais e do controle ambiental, a autonomia tecnológica e industrial como um componente do desenvolvimento sustentável, ainda que viabilizada em projetos conjuntos entre países, desde que justos no usufruto dos benefícios. Os países emergentes têm como desafio não só a superação de seus problemas estruturais mais gritantes, a exemplo dos desequilíbrios regionais, a concentração da renda, a falta de empregos, a pobreza e a fome, mas também a mudança da sua lógica de produção atualmente centrada na exportação de produtos primários e de monoculturas. A dependência extrema de países com inspiração imperialista é um risco que não se pode mais correr. Fica bastante evidente, a partir de agora, que para alcançar um desenvolvimento realmente sustentável, as economias emergentes precisam se reposicionar e opor-se na medida adequada ao poder imperial estadunidense e de seus aliados europeus. Pode-se argumentar que economias pobres não têm bala na agulha para participar de um processo tão complexo, mas, talvez, isso não seja totalmente verdadeiro e só requeira uma visão mais estratégica no jogo internacional. A política de sanções é uma faca de dois gumes e o exemplo mais hilário pode ser constatado na recente busca de diálogo dos dirigentes norte-americanos com a Venezuela e com o Iran, dois países sob sanções infernais. O embargo do petróleo proveniente da Rússia e a consequente alta do preço dos combustíveis pesou na balança e até o presidente da Venezuela, até então não reconhecido e humilhado por Washington, passou a ser respeitado de uma forma impressionante. Em suma, o conflito russo-ucraniano pode ser algo além do embate econômico dos EUA e seus aliados na intenção de conter a influência da China, caso seja visto pelas economias emergentes como uma possibilidade para abater a lógica e os fundamentos do Imperialismo associado aos mantras do neoliberalismo. A adoção dos fundamentos de um mundo multipolar será certamente benéfica para todas as nações. O mundo precisa urgentemente do respeito à diversidade e ao diálogo para sustentar um desenvolvimento sustentável capaz de abarcar todos os povos do planeta terra. Caso contrário, realmente só restará espaço para os ególatras, para seus instintos destrutivos e para suas ogivas nucleares.
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[1] https://ria.ru/20220311/zapad-1777581881.html (Consultado em 11/03/2020 - 10h25).
[2] Na América do Sul, embalados pela Guerra Fria e pelo poder imperial dos EUA, foram praticados golpes nos seguintes países: Paraguai (1954), Brasil (1964), Argentina (1966), Bolívia (1970), Chile e Uruguai (1973). Em todos eles, centenas de pessoas foram presas, torturadas e mortas, além da imposição de censura e controle político-ideológico da população. Essa fase foi marcada pela difusão dos valores e crenças da sociedade norte-americana na América Latina, bastante favorecida pelos meios de comunicação de massa alinhados ao regime e aos interesses estadunidenses. Prova de que a democracia norte-americana convive muito bem com o regime de exceção, desde que não seja em seu território e que esteja a serviço de seus interesses.
[3] Nesse sentido, os operadores da Lava Jato, operação aparentemente voltada para o combate à corrupção, mantiveram contatos com o FBI, Departamento de Justiça e Departamento de Estado dos EUA, que auxiliaram na estratégia bem-sucedida de minar a autonomia geopolítica brasileira e eliminar empresas nacionais que atuavam em concorrência com os interesses estadunidenses (Conferir: https://www.lemonde.fr/international/article/2021/04/09/au-bresil-une-operation-anticorruption-aux-methodes-contestables_6076204_3210.html).
[4] A participação ativa dessas mídias mereceu o agradecimento do presidente da Ucrânia, Vladimir Zelenski, em seu Twitter, às plataformas digitais. De acordo com ele: “Uma guerra não é somente uma oposição militar em solo da Ucrânia. É também uma feroz batalha no espaço informático. Quero agradecer a Meta [proprietária do Facebook, Instagram e WhatsApp] e a outras plataformas que têm uma postura ativa, que ajudam e estão ao lado dos ucranianos”. (Conferir: RT em Espanhol - https://actualidad.rt.com/actualidad/423682-zelenski-agradecer-facebook-plataformas-ayuda - 13/03/2020 - 18h41).
[5] A China avança significativamente no que se refere à tecnologia 5G, robótica e inteligência artificial, ou seja, tecnologias do futuro. Esse avanço assombra os norte-americanos, bem como a possibilidade de outros países, principalmente os emergentes, se aproximarem dos chineses nas próximas décadas. O pavor norte-americano tem base na realidade, quando se considera a presença significativa dos chineses no comércio internacional, principalmente no que se refere à América Latina e África. No caso específico do Brasil, o volume de comércio com a China atingiu cerca de 125 bilhões de dólares nos três primeiros trimestres de 2021 e a tendência parecer ser a de crescimento cada vez maior desse intercâmbio, que pode inclusive envolver a adoção de tecnologias e outros recursos.
[6] Daí a relevância militar do que se denomina guerra cognitiva: “Cognitive Warfare causes an insidious challenge. It disrupts the ordinary understandings and reactions to events in a gradual and subtle way, but with significant harmful effects over time. Cognitive warfare has universal reach, from the individual to states and multinational organisations. It feeds on the techniques of disinformation and propaganda aimed at psychologically exhausting the receptors of information. Everyone contributes to it, to varying degrees, consciously or subconsciously and it provides invaluable knowledge on society, especially open societies, such as those in the West. This knowledge can then be easily weaponised. It offers NATO’s adversaries a means of by passing the tradition a battlefield with significant strategic results, which may be utilised to radically transform Western societies”. François du Cluzel. Cognitive Warfare. Innovation Hub – Jan 2021.
[7] Isso tem a ver, obviamente, com a propaganda política, cuja finalidade foi muito bem definida por Paul Josef Goebbels, Ministro da Propaganda do Reich Alemão, no Congresso do Partido Nazista em Nuremberg em 1934: “Pode ser bom possuir o poder baseado na força, mas é melhor ganhar e manter o coração das pessoas” (Conferir: O Triunfo da Vontade – Filme de Leni Riefenstahl).
[8] A arrogância norte-americana extrapola os limites do bom-senso, quando o conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Jake Sullivan, ameaça a China por manter-se neutra no conflito Rússia-Ucrânia. A humildade é algo que falta aos que têm vocação imperialista e pensam comandar, como um titereiro, as cordinhas do mundo, ou seja, de quem imagina ser proprietário do planeta. Ter essa postura em relação à China parece ser, no mínimo, temeroso. É a postura de quem brinca com conflitos armados, sem pensar muito em suas consequências, principalmente se eles proporcionam apoio e legitimidade interna para governos fracos ou fragilizados, perante uma população ufanista, que adora armas e que já se acostumou com a violência policial e com as carnificinas de francos atiradores. (Conferir: https://www.reuters.com/world/white-house-adviser-discuss-russias-war-ukraine-with-chinas-top-diplomat-source-2022-03-13/).
