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Desobediência Civil Invertida

José Mendes de Oliveira

26 de janeiro de 20

 

Em 1849, Henry Thoreau, considerado por muitos um dos principais precursores do anarquismo individualista na vertente transcendentalista, publicava o seu ensaio Desobediência Civil, que pode ser considerado uma das mais expressivas e contundentes críticas ao jugo governamental e, também, um manifesto contra a guerra imperialista travada pelos EUA contra o México entre 1846 e 1848. Apoiado no discurso conveniente de um direito divino, os EUA avançaram contra o país latino, com os olhos da cobiça fixados nas riquezas da Califórnia e na expansão de seu próprio território. Calcula-se que o México tenha perdido quase 50% de suas terras com a invasão norte-americana. Thoreau recusou-se a pagar impostos para um Estado que, no mínimo, promovia ações moralmente condenáveis e por isso foi parar na prisão. O ensaísta e filósofo norte-americano foi, além de um espírito livre, um pacifista, um abolicionista e um precursor das causas ecológicas, que influenciou com suas ideias muitos pensadores e ativistas no século XX, a exemplo de Tolstói, Gandhi e Martin Luther King.

Ainda que se possa ver em Thoreau um anarquista, não é correto identificá-lo com a figura de um antigovernista radical. Em verdade o que ele buscava, de acordo com suas próprias palavras, era um governo melhor. Por detrás desse conceito de um governo melhor, encontrava-se a utopia de um Estado democrático, orientado essencialmente pelo respeito ao indivíduo, mas também ao cidadão. No final de seu ensaio sobre a Desobediência Civil, ele se posiciona da seguinte forma:

“Jamais haverá um Estado realmente livre e esclarecido até que este venha a reconhecer o indivíduo como um poder mais alto e independente, do qual deriva todo seu próprio poder e autoridade, e o trate da maneira adequada. Agrada-me imaginar um Estado que, afinal, possa permitir-se ser justo com todos os homens e tratar o indivíduo com respeito, como um seu semelhante; que consiga até mesmo não achar incompatível com sua própria paz o fato de uns poucos viverem à parte dele, sem intrometer-se com ele, sem serem abarcados por ele, e que cumpram todos os seus deveres como homens e cidadãos. Um Estado que produzisse este tipo de fruto, e que o deixasse cair assim que estivesse maduro, prepararia o caminho para um Estado ainda mais perfeito e glorioso, que também imaginei, mas que ainda não avistei em parte alguma”.[1]

 

Ao leitor mais atento não fugirá a percepção da preocupação de Thoreau com os governos, que sustentados na legitimidade da maioria (eu diria que as vezes também da minoria), perdem de vista a relevância das ações criteriosas e conscienciosas e embrenham-se por caminhos tortuosos. Em outras palavras, a cegueira e o automatismo dos indivíduos, dos eleitores e dos governantes, é a distância mais curta para a perda do discernimento e do senso moral (eu diria mais ético que moral), que geralmente conduz às ações corrosivas ou destrutivas patrocinadas pelo poder público, a exemplo do autoritarismo, dos atos de injustiça e, no limite, dos embates bélicos e das ações genocidas. A respeito do automatismo dos homens frente ao Estado, em um outro momento de seu ensaio, Thoreau apresenta um ilustrativo argumento:

“A grande maioria dos homens serve ao Estado desse modo, não como homens propria­mente, mas como máquinas, com seus corpos. São o exército permanente, as milícias, os car­cereiros, os policiais, os membros da força ci­vil, etc. Na maioria dos casos não há um livre exercício seja do discernimento ou do senso moral, eles simplesmente se colocam ao nível da árvore, da terra e das pedras. E talvez se pos­sam fabricar homens de madeira que sirvam igualmente a tal propósito. O valor que possuem é o mesmo dos cavalos e dos cães. No entanto, al­guns deles são até considerados bons cidadãos. Outros — como a maioria dos legisladores, po­líticos, advogados, ministros e funcionários pú­blicos — servem ao Estado principalmente com seu intelecto, e, como raramente fazem qual­quer distinção moral, estão igualmente pro­pensos a servir tanto ao diabo, sem intenção de fazê-lo, quanto a Deus”.[2]

 

A figura combativa de Thoreau e o conceito de desobediência civil contrasta bastante com o cenário negacionista e de falsa liberdade que assola boa parte do mundo e, sobretudo, o Brasil da atualidade. Daí a nossa especulação em torno da possibilidade de um conceito invertido, ou seja, de uma desobediência civil negativa e destrutiva.  O comportamento anárquico provocado pela onda neoliberal e pelo anarcocapitalismo sugere, particularmente na terra brasilis, uma reação destituída de qualquer tipo de indignação legítima em relação à possível hipocrisia do poder constituído ou dos excessos da legalidade desancorada do princípio de justiça. Por essa perspectiva, a desobediência civil invertida serve, além do propósito da imposição autoritária de vontades e interesses parciais e da defesa do mercado sem regulação, à expressão da bestialidade e do discurso de ódio que tem se espraiado com muita facilidade, particularmente entre os segmentos mais conservadores dos estratos medianos e entre os pobres de direita, narcotizados pela religião e pela teologia da prosperidade. Essa mesma desobediência é defendida pelos pequenos empresários e comerciantes, que não conseguem conceber a própria existência fora das referências do deus mercado: para ganhar dinheiro tudo é válido, inclusive a morte. A desobediência civil invertida é totalmente destituída de princípios morais ou éticos.

Os atores dessa desobediência macabra não possuem qualquer tipo de moralidade ou de ideal genuíno e, por essa razão, buscam nos vãos mais escuros da história as referências de simbologias autocráticas (adoram suásticas e braços erguidos em saudações aos césares). O renascimento da extrema direita com a conquista do poder constituído (na Alemanha hitlerista aconteceu algo semelhante) abriu as cancelas para as ideias e os atos mais abjetos que se possa imaginar: racismo, homofobia, ódio, violência gratuita, culto à ignorância, entre outras distorções cognitivas e de caráter. Figuras atróficas, destituídas de bom-senso e de qualquer tipo de moralidade, que se escondiam em algum abismo desconhecido, vieram à tona legitimadas pelo neofascismo, pela liberdade calçada nos ideais de mercado e pela visibilidade permissiva das mídias sociais. Inúmeros sujeitos incultos, esquizofrênicos e agressivos tornaram-se, de uma hora para outra, influenciadores digitais e formadores de opinião (que se enriquecem com os likes e doações dos incautos no Youtube e em outras plataformas). Essas estranhas figuras engajaram-se, felizes da vida, na defesa de ditaduras, na guerra contra vacinas, no combate às medidas sanitárias em plena pandemia da Covid-19 e em outras aventuras hediondas.

Além dessas perigosas bizarrices, e da mágica de ganhar dinheiro sem esforço e com muito besteirol, essa gente age no espaço público como se fossem proprietárias de ruas e praças, empoderadas pelo espírito de força emanado de suas lideranças autocráticas: os zumbis perversos, criaturas por essência heterônomas, reproduzem a perversidade de seus ídolos de barro. A desobediência civil invertida ou negativa ocorre de forma acintosa, a exemplo dos atos negacionistas na contenção da pandemia, mas também nas pequenas coisas do cotidiano como o deszelo com o espaço público e a falta de respeito às leis do trânsito. É possível observar, tornando-se um padrão de comportamento esparramado pelas cidades brasileiras, a total indiferença ao que dispõe a Lei nº 14.071, de 13 de outubro de 2020, que estabelece a obrigatoriedade do uso do farol baixo durante o dia nas rodovias de pista simples, bem como o descumprimento do que determina o art. 214 da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, ou seja, o direito do cidadão de uso com segurança das faixas destinadas aos pedestres. O governo dos déspotas parece dar aos parvos a sensação da falta de limites e o direito de transgredir todas as leis.

Não é incomum nos depararmos com situações inusitadas de motoristas alterados, que lançam latas de cerveja pelas janelas de seus carros nas rodovias ou que se irritam porque alguém acenou solicitando a passagem na faixa, além de inúmeras situações em que transeuntes são ameaçados por carros que avançam em alta velocidade sobre os pedestres. A impressão que se tem é a de uma guerra ou a de uma caçada desembestada em que mentecaptos ao volante buscam, propositalmente, atropelar as pessoas. O que se constata, por um lado, são egos enfraquecidos por detrás dos volantes, buscando um instrumento de poder que os ajude a superar o recalque e a frustração. O carro e a arma se equivalem nesse propósito, bem como a ira beligerante gratuita, a raiva destinada a tudo e a todos. Por outro lado, constata-se sujeitos arrogantes, que se apossam de um poder sem limites para fazer o que lhes dá na telha, na certeza da impunidade, porque entendem que seus veículos são propriedade privada e no espaço privado tudo podem, ainda que estejam circulando em vias públicas, isto é, que pertencem ao coletivo[3].

No contexto do neoliberalismo tupiniquim e de seu darwinismo social, parece que a débil cidadania brasileira foi finalmente sepultada, abrindo o espaço para a hegemonia de um individualismo selvagem, destrutivo e desgarrado de preceitos morais. Não se trata apenas de egoísmo, mas de uma forma de ser bizarra em que se nega a autoridade das normas que regem o coletivo, a coexistência e as relações contratuais, mas se aceita os desmandos dos déspotas, tiranos e genocidas. O individualismo tupiniquim combina muito bem com os fundamentos do anarcocapitalismo no que se refere basicamente ao conceito de soberania do indivíduo, calcada na propriedade privada, no livre mercado e no livre arbítrio irresponsável, mas talvez seja ainda mais radical no sentido de que não se escora em nenhuma utopia, ou seja, não consegue ir além da injustiça naturalizada e do espírito de guerra ou destruição permanente. Daí que ele se harmoniza muito bem com o hedonismo sem compromisso com o futuro, com o desprezo por uma existência benfazeja e com o culto à morte.

A ideia de uma forma de desobediência civil invertida, ou seja, desprendida de qualquer indignação razoavelmente defensável, de uma manifestação da reflexão questionadora, de um ato de conscienciosidade e de uma utopia, contrasta com a reação comprometida com um governo melhor e com um Estado democrático demonstrada por Thoreau. A ideia de uma desobediência civil invertida é a expressão de uma incivilidade em que a norma é relativizada na defesa dos interesses privados e hostilizada quando posta em defesa dos interesses coletivos. Não há inteligência na anarquia dos adeptos da direita e da extrema direita tupiniquins, porque eles não têm nada a propor além da acumulação rápida de riquezas, ainda que isso signifique gerar o caos econômico, aumentar as desigualdades, promover injustiças sociais e destruir o meio ambiente. Essa gente não está comprometida com a melhoria do Estado e do governo, mas apenas com o próprio umbigo. Eles são o suprassumo da terrível herança da Casa Grande e como tal não conseguem sobrevier em um estado diferente daquele que é regido pela apartação social. Na desobediência civil de Thoreau há a inteligência de quem questiona as contradições dos governos e dos Estados, mas na desobediência civil invertida há apenas a violência sem sentido ou a imposição narcisista de uma visão de mundo onde a existências dos outros é dispensável. Não é por outra razão que negacionistas bestializados defendem, em nome de uma estranha liberdade e de uma meritocracia fantasiosa, o não compromisso com medidas sanitárias, rejeitam a imunização de crianças e. no fundo, querem ver o caos e uma situação social onde possam reinar os plutocratas por intermédio do poder gerado por suas riquezas e por seus privilégios.

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[1] Henry David Thoreau. Desobediência Civil. Coleção L&PM Pocket – Vol. 17. 1ed. Porto Alegre. Editora LPM, 1997 (p.43-44).

[2] Ob. Cit. p. 9-10.

[3] No instrutivo desenho animado da Disney de 1950 – Senhor Volante – o pacifico Sr. Walker, interpretado pelo conhecido Pateta (Goofy), se transforma em um sujeito endemoniado, o Sr. Wheeler, ao tomar posse do volante de um carro. O Sr. Walker, possuído pela sensação de poder e ira na figura do Sr. Wheeler, também acredita que tem a posse das ruas, como propriedade privada, por julgar que o pagamento de impostos lhe concede essa condição. Além da distante lembrança do dilema existencial, que pode ser sugerido pela tragédia de Mr. Hyde e Dr. Jekyll, o Sr. Wheeler não passa realmente de um sujeito destrambelhado.

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