
Realismo Tupiniquim
José Mendes de Oliveira
06 de fevereiro de 2025
Nesta época em que grassa a perda da memória e o mundo se curva ao poder dos parvos de todos os matizes, que encontraram nas mídias sociais um canal de expressão efetivo e na política a catarse para todas as suas neuroses, a leitura do livro Realismo Capitalista[1] de autoria de Mark Fisher é um lenitivo para as almas constrangidas e desesperadas, que correm em busca de uma explicação razoável para um momento histórico que se assemelha a um filme de terror. O livro foi publicado em 2009, mas permanece muito atual, particularmente neste momento em que partidos outrora definidos como de esquerda, enredados em uma frente ampla governista capitaneada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), flexionam na política em direção à direita e, na economia, em direção ao social liberalismo como versão mais adocicada do neoliberalismo. De uma forma muito resumida, que obviamente não faz jus à densidade do texto, o realismo capitalista pode ser compreendido como a crença de que não há alternativa ao capitalismo. Essa crença não surge hoje. Em verdade, para compreendê-la é necessário considerar os impactos do thatcherismo e do reaganismo nos anos 80, bem como a dissolução da União Soviética na década de 90, fenômeno que inspirou Francis Fukuyama a declarar, em seu livro O Fim da História e o Último Homem[2] publicado em 1992, a vitória definitiva do capitalismo e das democracias liberais.
A crítica mais contundente de Fisher é direcionada ao blairismo e à política da Terceira Via, ou mais especificamente ao que ocorreu com o Partido Trabalhista inglês nas mãos de figuras como Tony Blair e de intelectuais como Anthony Giddens, promotores do que ficou conhecido como o Novo Trabalhismo, que seria a tradução mais genuína do realismo capitalista como uma patologia das esquerdas. Em outras palavras, como o trabalhismo inglês se curvou à aceitação de que não havia alternativa ao neoliberalismo, a não ser adequar-se politicamente a ele. É óbvio que o Brasil não é a Inglaterra, nem se pode estabelecer uma relação de semelhança entre a história do trabalhismo inglês e a organização dos trabalhadores no Brasil no final da década de 70, mas é tentador e quase inevitável não admitir que, após cerca de 30 anos decorridos desde o início da gestão de Tony Blair na Inglaterra e pouco mais de 11 anos desde a última gestão petista no Brasil, o realismo capitalista permanece vivo e, ainda que não seja o único fator a explicar as opções políticas da atual frente ampla comandada pelo PT, não pode ser menosprezado como elemento de explicação e entendimento do comportamento de partidos que se distanciam de suas bases e abraçam a defesa de interesses dos segmentos sociais que os demonizam. É uma aparente contradição, que pode ser obviamente explicada pela dinâmica da manutenção do poder das elites no Brasil, mas que se redimensiona quando considerada na perspectiva do realismo capitalista.
O conceito desnuda o trágico papel que as autointituladas esquerdas, com destaque para o PT em terras de Macunaíma, passam a desempenhar dentro da ordem burguesa: ao adotar o social liberalismo ou o neoliberalismo progressista[3], abraçam as agendas da direita e da extrema direita mediante a sedução e convencimento de seus eleitores no que se refere a intransponibilidade do status quo e, nesse sentido, prestam um serviço eficiente e efetivo na desmobilização dos movimentos sociais e fortalecimento do próprio realismo capitalista. O exemplo mais evidente dessa ocorrência é a defesa intransigente do arcabouço fiscal. Esse arcabouço nada mais é que o fruto de uma política de austeridade[4], que se traduz na forma de tributação regressiva e cortes nos gastos públicos direcionados à retração das políticas públicas e sociais (a exemplo das áreas de saúde e educação) relevantes para os setores mais carentes da sociedade. A tributação regressiva favorece a minoria dos mais ricos, sobretudo o segmento do rentismo, ao passo que o corte no orçamento público tende a beneficiar os investidores dentro e fora do país, tendo em vista que a prioridade é garantir o pagamento da dívida pública que se encontra no poder de credores nacionais e internacionais. Tudo isso se soma com uma política monetária contracionista, que favorece altas consecutivas de juros e consequentemente o benefício de quem atua no mercado financeiro.
O mais triste em meio a isso tudo é precisamente o papel que antigas esquerdas, nascidas de movimentos trabalhistas e populares, passam a desempenhar na legitimação das artimanhas do capital no contorcionismo da sobrevivência. No caso da política brasileira, esse reforço do realismo capitalista soma-se aos arranjos e coalizões em prol da governabilidade, que permitem a perpetuação das elites no poder e a garantia da defesa de seus interesses econômicos. Na era de agitação da extrema direita em todo o mundo, o clima que resulta de tudo isso é o do pessimismo, do sentimento de traição e do desconforto na procura de uma porta de saída, que parece não existir, ou seja, a sensação do acuamento. Para todos aqueles que votaram na frente ampla na esperança de, pelo menos, conter o avanço da extrema direita em solo tupiniquim, tem-se a impressão de que o terreno está sendo preparado ou adubado para o retorno do obscurantismo fascista. O imobilismo da autointitulada esquerda brasileira, para além do que consegue realizar nos arranjos para se manter no poder e na esfera do identitarismo e das políticas focalizadas, causa desesperança e sugere que a única alternativa é administrar, da melhor forma possível e por intermédio de um pragmatismo desestimulante, o capitalismo neoliberal. Isso representa a morte das utopias e o cancelamento do futuro.
Torna-se urgente a reação a esse desânimo e falta de perspectiva. Para tanto, talvez seja interessante prestar atenção no otimismo construtivo de Fisher, que resulta do seu esforço em superar a sua própria depressão e pessimismo com os caminhos embrenhados pelo trabalhismo, no sentido da urgente contenção da deterioração da imaginação social e construção coletiva de um novo sujeito político. De acordo com nossa leitura, é preciso retomar o valor das utopias e reconstruir o pensamento de esquerda, banindo-se o comportamento pragmático antiutópico e burocrático daqueles que se autointitulam apenas progressistas, que, conscientemente ou inconscientemente, acreditam de fato que Fukuyama sempre teve razão. Em outras palavras, é necessário retomar a capacidade das esquerdas de pensar e criar oportunidades para o futuro. No caso específico do Brasil, parece evidente a necessidade de superação da inevitabilidade do lulopetismo como única alternativa de representação dos interesses e das causas populares, em busca de soluções que possam retomar, como estabelece Fisher, os ideais e as ações voltadas para a construção de um socialismo popular. Essa alternativa não será viável com a pretensa e ilusória conciliação de classes, coalizões partidárias descompensadas, distanciamento das bases e desarticulação dos movimentos sociais. A política burocrática das tratativas palacianas deve ser abandonada o mais rápido possível, caso contrário as ruas serão retomadas de forma assustadora pelas figuras mais sinistras da extrema direita, prometendo a guerra contra o sistema, mas, em verdade, abduzindo corpos e almas indignadas e ressentidas para a manutenção de um capitalismo que não precisará mais recorrer as artimanhas de seu realismo como alternativa de colonização das consciências, porque estará autorizado a calar seus dissidentes de forma muito mais agressiva e a instaurar a normalização definitiva da barbárie.
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[1] Mark Fisher. Realismo Capitalista: É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? 1ed. São Paulo. Autonomia Literária, 2020.
[2] Francis Fukuyama. O Fim da História e o Último Homem. 3ed. Lisboa. Gradiva, 2007.
[3] Esse conceito é utilizado por Nancy Fraser para traduzir o processo em que o projeto neoliberal é reembalado para receber um apelo mais amplo e ligado a outras aspirações emancipatórias não econômicas, ou seja, é a combinação das orientações neoliberais na economia com um ethos de reconhecimento de demandas específicas ou focalizadas como os ideais de diversidade, empoderamento de mulheres, direitos LGBTQ+, multiculturalismo e ambientalismo, entre outras. Conferir: Nancy Fraser. O Velho está morrendo e o Novo não Pode Nascer. São Paulo. Autonomia Literária, 2021.
[4] De acordo com Clara Mattei, não obstante o discurso da estabilização econômica, o regime de austeridade visa prioritariamente assegurar que a tríade de políticas fiscais, políticas monetárias e erosão da capacidade da classe trabalhadora de reagir ou opor-se a elas impeçam a dissidência. Conferir: Clara E. Mattei. A Ordem do Capital: como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo. 1ed. São Paulo. Boitempo, 2023.
