
Políticos Venais e a Miséria do Povão
José Mendes de Oliveira
05 de novembro de 2021
A sedução do eleitorado de baixa renda pela extrema direita no Brasil não é exatamente uma novidade. Isso se deve em parte à fragilidade da democracia tupiniquim e à permanência de estratégias populistas e bonapartistas no processo político do país. O poder de influência de lideranças carismáticas, genuínas ou construídas artificialmente, não é algo incomum na política latino-americana e tem presença significativa em solo brasileiro. No continente registram-se os exemplos clássicos de Vargas (1822-1954) e de Peron (1895-1974). O primeiro no Brasil e o segundo na Argentina.
Entre muitas características que particularizam as lideranças carismáticas encontra-se a capacidade de estabelecer vínculos emocionais com as massas, sobrepondo-se à mediação dos partidos políticos e da identificação imediata com grupos ou classes sociais específicas. Pressupõe-se que essas lideranças possam flutuar de forma independente sobre a dinâmica dos partidos. Elas podem também estar a serviço de agendas retrógadas ou progressistas e, portanto, não é adequado observá-las como um fenômeno circunscrito aos regimes autoritários, a exemplo do fascismo de Mussolini (1883-1945) ou do nazismo de Hitler (1989-1945).
Do nosso ponto de vista, o fenômeno do bolsonarismo no Brasil, que alavanca a ascensão da extrema direita ao poder, tem como uma de suas principais marcas a construção artificial desse tipo de liderança: uma espécie de carisma construído como uma comercial brand (a exemplo do que foi feito com Collor). Para isso tem contribuído a ação da mídia convencional, das mídias sociais e das tendências fundamentalistas do catolicismo e do neopentecostalismo. A figura do presidente da república transformada em mito, em messias e em salvador da pátria - no sentido conservador e de crítica às agendas progressistas e mais especificamente de perseguição ao lulopetismo - presta um serviço relevante para o arrebanhamento e arrebatamento escatológico das massas mais incultas e carentes.
Nesse processo de cooptação, os direitos dos cidadãos são transformados em dádivas e os políticos, destacando-se o presidente da república na condição de capo di tutti capo, são transformados em pais provedores ou em entidades onipotentes (com a horrorosa graça dos neopentecostais). Em alguns casos, essas figuras são transmutadas em ritos de impacto religioso, a exemplo do atual mandatário do país que foi abluído, simbolicamente e como peça publicitária, nas águas do Rio Jordão. A figura mítica do salvador da pátria dos extremistas de direita serve também para o encantamento dos setores medianos, que se deixam levar pelo falso moralismo. A criminalização da política e o discurso da anticorrupção – com ou sem o apoio de procuradores e juízes – são providenciais para atrair os segmentos medianos, que mantêm ideário conservador e posturas punitivistas no que se refere ao exercício da função pública e da política. No extremo do que é nonsense, os setores medianos que desejam seus filhos nas universidades e depois em um emprego público, elaboram críticas ácidas ao Estado e inferiorizam, sempre que podem, a labuta dos servidores públicos. Nesse sentido, funcionam muito bem como os cães de guarda dos arautos do neoliberalismo tupiniquim, ainda que o desejo de ser rico e poderoso se restrinja aos devaneios regados pelo scotch barato dos finais de semana.
Os líderes populistas conseguem, facilmente, inflamar o discurso da criminalização da política, dos políticos e dos servidores públicos, aumentando o ódio e o desejo de vingança dos segmentos medianos. No caso brasileiro, a engenharia conta com a colaboração do Poder Judiciário de forma desbragada, por meio das operações do Ministério Público, das forças policiais associadas e dos tribunais (inclusive do STF), que reúnem uma burocracia bem remunerada, oriunda dos segmentos medianos da sociedade mais conservadores, mais arrivistas e com forte vocação para a prática do alpinismo social. Essa gente desonesta que recebe altos salários do Estado, mas que deseja destruir a República e, quando ameaçada por seus próprios crimes, não se acanha de correr para os braços da política em busca da, até então, denegrida imunidade (síndrome da Geni). Falta vergonha não só na cara, mas em todo o espírito dessa gente, se é que ele existe.
As lideranças populistas são ambíguas, particularmente aquelas geradas no seio do extremismo à direita, que precisam alimentar diuturnamente o caráter comercial de seu carisma. Elas representam os interesses de grupos de elite, mas nas ruas precisam manter a falsa distância entre o que realmente são e o compromisso com o povo. Para tanto, estão dispostas a inúmeras bizarrices e a práticas não usuais: comer broa de milho, pastel de boteco, buchada de bode na feira, pão de queijo na padaria, pão francês com leite condensado, calçar chinelões arregaçados, vestir camisetas de clubes de futebol amarrotadas, abraçar criancinhas assustadas e até mesmo manter uma conversa descontraída com garçons e empregados nos banquetes e recepções televisionadas.
Assim como o capital arranjou-se sem pudor ou remorsos com o nazismo hitlerista – não nos esqueçamos da desenvoltura da Volkswagen, BMW, Mercedes Bens, Hugo Boss, IBM, Bayer, Siemens e de tantas outras -, na experiência latino-americana as elites econômicas lidam muito bem com os líderes populistas, desde que possam garantir os lucros e o poder de influência nas decisões governamentais. Esses líderes viabilizam as políticas necessárias para a manutenção das condições favoráveis à concentração da riqueza e dos privilégios dos grupos mais abastados. Nesse sentido, servem ao propósito de manter acesa a chama do fisiologismo, dos arranjos e maracutaias capazes de conter qualquer tipo de reação contra o status quo. Eles são os engenheiros responsáveis pela eficiente, eficácia e efetividade do mecanismo.
Nunca é demais lembrar que, no caso brasileiro, as influências do coronelismo e do voto de cabresto fulanizaram o fisiologismo. O mote do é dando que se recebe faz parte do patrimônio cultural e orienta não só as relações dentro e entre partidos, mas também entre os políticos e seus eleitores. Ainda não foi superada a nefasta herança tupiniquim da venda e troca de votos por espécie, promessas de emprego ou mesmo um prato de comida. Isso é válido nos períodos eleitorais e também nas compras de apoio entre os atores dos poderes constituídos. Daí o poder das emendas parlamentares no contexto do polêmico federalismo brasileiro. Na inviabilidade das barganhas e maracutaias – que podem envolver Congresso, Judiciário, STF e tudo mais-, impera a força da farda e da carabina. A fórmula na terra brasilis é muito simples: quando falha o poder do fisiologismo apela-se para os golpes institucionais ou militares.
Observando-se o cenário atual, temos que admitir, para o bem da verdade, que o líder do bolsonarismo no Palácio do Planalto não parece ser muito carismático com suas incontáveis parvoíces e rompantes escatológicos, mas, na era das falsas verdades, o que importa é o que a mídia e seus eleitores produzem em profusão no sentido da beatificação do que mais parece ser a besta-fera do apocalipse. Vivemos há muito tempo na era do capitalismo financeiro e da sociedade do espetáculo, onde as fantasias e quimeras ocupam o lugar do real, ou seja, em que se transpõe o imaginário para o real e se transfere o real para a esfera do imponderável, e isso é útil para construir mitos, além de ser suficiente para normalizar as aberrações e banalizar o mal.
No meio dessa confusão toda, com os cérebros entorpecidos, muita sente simplória passa a acreditar em qualquer maluquice e a desacreditar a evidência dos fatos. Essa massa de cérebros liquidificados pode estar disposta, embalada pelas mentiras e pela má influência das religiões do mal, a reforçar o voto nos falsos profetas e no messias encastelado na cadeira presidencial. A coisa pode piorar se o messias, que obviamente não faz milagres, estiver imbuído do propósito de utilizar todos os recursos da máquina administrativa do Estado para fazer aquilo que os populistas fisiológicos fazem de melhor: comprar a confiança e o voto dos descamisados com medidas compensatórias (circo e pão), bem como o apoio de seus parceiros parlamentares com o ópio dos corruptos. No caso da PEC dos Precatórios, o presentinho do Executivo foi da ordem de R$ 1,2 bilhões, totalizando cerca de R$ 15 milhões por deputado de acordo com a imprensa[1]. Em outras palavras, algo mais alucinante que LCD na veia para os viciados no dinheiro
A propósito, a PEC dos Precatórios, também definida como a PEC da Reeleição, é a mais recente demonstração de que o país mudou muito pouco em relação às práticas populistas e eleitoreiras. Essa feitiçaria conduzida pelo Executivo com o apoio incondicional dos deputados do famigerado centrão (sempre eles!), mas também da esquerda gatuna, viabilizou ao bolsonarismo fôlego para a corrida eleitoral de 2022. Não obstante o estado de emergência, que obriga a ajuda imediata aos brasileiros em situação socioeconômica crítica, a engenharia em torno do calote aos precatórios vai muito além da prometida ajuda de R$ 400,00 do Programa Auxílio Brasil (o pretenso substituto do Bolsa Família), que resultaria em um gasto total em torno de 67 bilhões até as eleições de 2022. O que virá depois do pleito, além da expectativa de coisa alguma, só os deuses sabem. Porém, para o povão destituído de comida e de juízo, esse tipo de coisa cai dos céus como maná divino.
Entretanto, as bruxarias não ficam apenas na atração das barrigas vazias dos roedores de ossos, abrem-se espaços para satisfazer apoios específicos como o provido por caminhoneiros (cerca de 4 bilhões para os apoiadores autônomos) e, como não poderia deixar de ser, o conhecido jabá dos parlamentares (cerca de 20 bilhões para emendas). Nesse caso, a lógica é a mesma: dinheiro para assegurar o apoio das bases e para forrar os bolsos. O interessante é que a política na terra brasilis é avessa a qualquer tipo de pudor: para emplacar o impedimento de Dilma Rousseff bastou as tais pedaladas fiscais, inventadas pelos burocratas de duvidoso caráter e fiel obediência às elites nacionais, mas para manter o candidato da extrema direita vale tudo, inclusive romper o famigerado teto de gastos criado pela própria direita. Em outras palavras, o país é uma tremenda esculhambação, onde impera canalhice e incontáveis trapaças. A coerência serve apenas aos bobos, ingênuos e honestos.
A confusão é grande e reforça a dificuldade para entender o baile vampiresco da política tupiniquim. O que causa desolação, frente ao absurdo cenário de destruição provocada pelas elites reacionárias neste momento em que o país foi tomado pelas trevas, é assistir a esquerda gatuna, que geralmente propõe revoluções em mesas de bares ou nos churrascos pequeno-burgueses dos finais de semana, apoiando sem constrangimento as ações táticas da extrema direita. No apoio à famigerada PEC do Calote aos Precatórios, 71,4% dos parlamentares do PDT, hoje em sua versão muito distante do brizolismo histórico, votaram a favor da PEC, e no mesmo rumo foi o PSB com o apoio de 31% de seus deputados votantes[2]. Isso revolta até o mais indômito Pangloss. Afinal, em quem se pode confiar, quando os interesses de reacionários e de pretensos progressistas convergem? O que assistimos é a dança macabra dos abastados nas ruinas do palácio dos horrores, que reúne todo tipo de vampiros à direita e à esquerda.
A situação fica ainda mais assustadora, principalmente para quem já alimenta pouquíssima esperança, quando se constata que o discurso da terceira via é lorota para desavisados. O apoio do PSDB e do Podemos à PEC, com a participação respectiva de 78,5% e 55% dos votos reservados a esses partidos, é prova contumaz que a direita cor de rosa, em verdade, não quer nenhuma terceira via, mas de fato continuar no apoio ao bolsonarismo e aos seus asseclas. Os dois partidos já insinuaram seus candidatos às eleições de 2022 e, com o voto na famigerada PEC, parecem desacreditá-los ou pelo menos enfraquecê-los. Não se trata definitivamente de fidelidade ideológica ou de compromisso com programas voltados para o bem do país, mas apenas a manutenção da agenda econômica neoliberal e do fisiologismo parlamentar, que garante às mariposas da direita, do centro e da esquerda gatuna a manutenção de suas riquezas e de seus interesses privados. O Brasil não precisa de outros inimigos além de suas próprias elites e de seus representantes políticos. Eles são capazes de fazer a destruição de toda uma guerra.
Para todos esses populistas, inclusive para aqueles que constituem uma certa esquerda, que se dissimula como camaleão, o cidadão de baixa renda é só mais um voto que pode ser comprado como mercadoria. Depois da compra, nada mais se deve e com o voto pode-se fazer o que bem entender: mais exploração, mais miséria, mais degradação, mais destruição e mais humilhação. Ao vendedor do voto só resta mais ignorância, mais carências, o desejo da morte prematura e, certamente, a explosão de uma raiva irracional, que bem direcionada e canalizada servirá à direita populista como combustível para suas campanhas de medo e ódio nas mídias sociais.
A propósito, o brasileiro que já não tinha o hábito da leitura não lê mais nada, a não ser as mensagens cifradas e tacanhas das fofocas veiculadas no WhatsApp, no Instagram, no Telegram, no Twitter e no minimalista Tik Tok, que soa como tartamudeio infantil (soa como os ratinhos Plic e Ploc). Na ausência da leitura, torna-se cada vez mais irreflexivo, infantil e irascível. No meio da desinformação e do culto às mentiras, além da influência distorciva da mística religiosa, grande parte dos brasileiros não consegue juntar o Tico com o Teco. A boçalidade tem tomado conta do país e todas as manifestações destrutivas da pulsão de morte têm vindo à tona: racismo, homofobia, misoginia, sadismo e outras perversões. As elites fazem política com essas distorções e continuam muito bem contando os seus vis metais. E o povão? Como diria o notório Justo Veríssimo, que tonitruava seus aforismos com a aparente sabedoria dos coronéis: o povo que se exploda!
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[1]https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,governo-libera-r-1-2-bi-do-orcamento-secreto-na-vespera-de-votacao-de-pec-dos-precatorios,70003889788 (Consultado em 05/11/2021).
[2]https://noticias.uol.com.br/colunas/josias-de-souza/2021/11/04/oposicao-salva-pec-da-reeleicao-de-bolsonaro.htm (Consultado em 04/11/2021).
