
O Brasil de Sempre
José Mendes de Oliveira
20 de dezembro de 2021
O discurso dos arranjos políticos em prol da governabilidade não é novo e, em verdade, sempre serviu no Brasil para acomodar os interesses dos poderosos, ou seja, das elites. O sistema de coalizões sempre foi um freio muito efetivo para as mudanças estruturais requeridas pelo país. As alianças desastrosas também favorecem os golpes institucionais ou o acesso acidental de péssimos políticos à presidência. Não importa que seja Michel Temer, Geraldo Alckmin ou qualquer outro representante dos interesses do mercado e do ideário de direita, o que incomoda é a tese de que sem a Casa Grande o Brasil não pode ser governado. É uma espécie de derrotismo prenunciado, que só realça a fragilidade dos pretensos partidos de esquerda no país, mas também expressão de uma cultura que demoniza, de forma hipócrita, conflitos explícitos e a possibilidade de rupturas. Não é preciso ser marxista para saber que não existe a história sem essas ocorrências. No entanto, há muita gente pedindo socorro a Otto von Bismarck para defender a moderação, expressa no eufemístico e cínico bordão: a política é a arte do possível. Na hipótese da maior parte da população ficar à margem desse possível, não importa, o que importa é o jogo do poder e a manutenção do status quo.
Em relação a tudo isso, é assustador o posicionamento de parte da imprensa, que se autointitula progressista e independente, na defesa da aliança política entre Luiz Inácio Lula da Silva e o agora ex-tucano Geraldo Alckmin. Em verdade é tudo muito esquizofrênico: jornalistas que até então fustigavam os políticos de direita com críticas corrosivas, hoje tecem elogios e se esforçam por maquiar o passado dos antigos desafetos. Tudo em prol do combate ao bolsonarismo. O discurso pode até ser legítimo, mas as práticas muito duvidosas. O antes criticado Alckmin tem se tornado, nos sítios progressistas, a figura de um estadista impecável ou do liberal autêntico, ainda que não saibamos o que isso significa neste país. Daí vem os exageros: Alckmin tem sido transformado em político expressivo para conversar com o mercado, no articulador para arregimentar apoio no parlamento e no sujeito que servirá de freio à tara golpista da extrema direita. O mais absurdo é acreditar que tudo isso possa ser viabilizado por uma pessoa que não se antagoniza com agendas neoliberais e com as práticas excludentes do capitalismo selvagem tupiniquim, inclusive no que se refere às reformas econômicas patrocinadas pelo atual governo.
O esforço da transformação de um político provinciano em estrategista fantástico é muito constrangedor e a simpatia exagerada em relação a uma pessoa abertamente conservadora faz a gente pensar sobre o que é realmente direita e esquerda no país de Macunaíma. A tal imprensa independente, em verdade, converge indisfarçavelmente em direção às posições da imprensa hegemônica, por ela definida como golpista e de direita. Ambos os lados aplaudem a possível aliança petista com fogos e com elogios à genialidade política de Lula (até a Globo!). Fazem malabarismos mentais e retóricos para justificar que o desastre do passado, destacando-se o ato de traição de Temer, foi simplesmente um fenômeno conjuntural e que se deveu à fragilidade política de Dilma Rousseff, ou seja, são capazes de imolar a vítima da traição para justificar a aposta arriscada em um político conservador, que não deveria ser comparado ao empresário José Alencar porque não são semelhantes e que não parece se distanciar muito do ideário de Temer como querem acreditar. Insistem em admitir de forma equivocada que vice-presidentes são decorativos na terra brasilis, fato que a história nega com inúmeras ocorrências nefastas e com impedimentos estratégicos levados a termo pelos donos do poder[1].
No meio de tudo isso, parecem não perceber que o discurso ufanista os aproxima, cada vez mais, do messianismo e do salvacionismo típico dos populistas, prática que não é estranha à direita centrista ou extremada da terra brasilis. O jantar realizado com os prosélitos da coalizão salvacionista no A Figueira Rubaiyat em São Paulo, restaurante visitado pela pequena burguesia paulistana, contou com a presença das figuras mais interessantes e teoricamente dissonantes que se possa imaginar. Lá estiveram, de acordo com a imprensa, personalidades ligadas ao PSDB, além dos naturais representantes dos partidos interessados na coalizão, e também o dono da Marketing Digital M4A, empresa que coordenou o marketing eleitoral e a captação financeira para as campanhas de Jair Bolsonaro e do PSL em 2018[2]. Em suma, no Brasil a política se parece com a feijoada, prato típico em que se mistura de tudo um pouco. Todos sabemos que, para os organismos frágeis, a feijoada pode ser muito indigesta. O prazer gastronômico pode ser sucedido por muita dor de cabeça e cólicas intestinais.
A euforia da imprensa alternativa engajada nos acordos de caráter eleitoreiro deveria ser mais contida e talvez mais inteligente no sentido de analisar, à luz da história, as armadilhas e percalços dos arranjos políticos no Brasil. A vontade de superar o bolsonarismo é legítima e ninguém irá contestar esse sentimento, mas a extrema direita recém-saída do armário não se resume a Bolsonaro. Após as eleições, sobretudo se a aliança for vitoriosa nas urnas, a tarefa mais relevante será reconstruir as instituições destroçadas a partir de 2016. Cabe, portanto, uma pergunta: será possível a implementação de uma agenda progressista, compromissada com o resgate humanitário do país, com os arautos do neoliberalismo tupiniquim ocupando os gabinetes palacianos e ministeriais? É muita ingenuidade, se não for burrice, apostar todas as fichas na suposta incolumidade de Lula para conter os arroubos da direita que poderá estar ao seu lado. Ele não é um super-homem e terá que ceder se optar pelo suposto acordo com Alckmin, assim como ele foi obrigado a ceder no passado com a Carta ao Povo Brasileiro e com as costuras parlamentares junto aos políticos do ubíquo e venal Centrão. Vamos ver o que dirá a imprensa incauta se essa estranha aliança vingar, ganhar e fracassar no cumprimento de todas as expectativas ou se ela for um sucesso e deixar como herança a presidência para Alckmin em 2026. Voltarão a defenestrar o político paulistano ou atribuirão a Lula a mesma suposta fragilidade da injustiçada Dilma Rousseff?
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[1] Caso de Pedro Aleixo, por exemplo, que foi impedido de tomar posse na presidência pela junta governativa provisória durante a ditadura militar no Brasil.
[2] Conferir: https://www.poder360.com.br/eleicoes/lula-e-alckmin-dividem-mesa-em-jantar-em-sao-paulo/
https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/jantar-de-lula-teve-ate-marqueteiro-de-bolsonaro-em-2018 (acessados em 20/12/2021).
