
Civilização ou Barbárie
José Mendes de Oliveira
29 de maio de 2022
As próximas eleições que ocorrem no Brasil no mês de outubro devem ser encaradas, rapidamente, como um processo crucial de definição do futuro do país. Não cabe mais discutir se é a derrota do fascismo ou a vitória da democracia como se fosse uma peleja esportiva. A situação é muito mais crítica: trata-se de decidir entre a civilização e a barbárie. O país chegou ao ponto crítico de sua existência como sociedade. Ultrapassado esse limite não restará alternativa ou retorno. Não se trata mais de reviver a truculência da ditadura militar ou de enfrentar a agressiva agenda de exclusão das elites neoliberais. O que ocorre atualmente não se restringe à destruição do Estado nem ao uso de chacinas policiais como instrumento político, porque o país convive com essas práticas há muito tempo. O Brasil trava guerras contra a sua própria população cotidianamente nos centros e nas periferias de suas cidades há décadas. Em outubro de 2021, a Unicef alertava que, entre os anos de 2016 e 2021, 35 mil crianças e adolescentes foram mortos de forma violenta no país[1], ou seja, média de 7 mil mortes por ano. Apenas no ano de 2020, em plena pandemia, registrou-se no país 6.416 mortes causadas por policiais civis e militares de folga ou em serviço[2]. De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre 2013 e 2020, cerca de 37.029 cidadãos brasileiros morreram em decorrência de intervenção policial[3]. Esse número é assustador porque corresponde a 21% do total de 174.000 mortes registradas, no período de dez anos, na Guerra do Iraque[4]. Então, além de tudo, o que torna a situação periclitante neste momento?
O que torna tudo mais complicado não é só a destruição premeditada do quadro institucional ou das bases da convivência social, mas a aceitação aberta da violência militar e paramilitar como algo corriqueiro. O exemplo mais expressivo disso foi, além da chacina na Vila Cruzeiro no Rio de Janeiro[5], a recente execução de Genivaldo de Jesus Santos, em Sergipe, após a abordagem de agentes da Polícia Rodoviária Federal, que o colocaram no baú da viatura e o asfixiaram com spray de pimenta e gás lacrimogêneo em plena via pública, à luz do dia e em meio a audiência de transeuntes. A razão da atrocidade: o cidadão dirigia uma motocicleta sem a proteção de um capacete[6]. A execução em câmaras de gás teve início na Alemanha nazista de Hitler em 1941, quando oficiais da SS começaram a eliminar, de forma assistemática, prisioneiros em caminhões lacrados com monóxido de carbono[7]. A coisa evoluiu para uma prática sistematizada na fase aguda do extermínio nos campos de concentração com o uso do inseticida Zyclon (B). Portanto, o que se passou em Sergipe - não há outra expressão para isso -, foi uma ação bárbara de inspiração profundamente nazista. As imagens veiculadas na internet e pelos meios de comunicação tradicionais permitiram perceber, de forma assustadora, a tranquilidade dos policiais na prática da atrocidade em meio aos comentários de um público posicionado como plateia.
O que estamos presenciando no país requer, no mínimo, que se ponha as barbas de molho. Não se trata apenas da camiseta com uma suástica de um adolescente racista ou a braçadeira hitlerista de um empresário extremista. O que estamos assistindo agora é uma ação feita às claras e registrada em boletim de serviços. Em outras palavras, estamos admitindo sem resistência a banalização do mal, ou seja, estamos naturalizando aos poucos a barbárie. A simbologia da tortura e da execução ao ar livre é muito mais significativa que os atos na calada da noite, ainda que ambos sejam abjetos, porque ela estabelece um padrão de normalidade inaceitável. O que passa a ser rotina deixa de ser visto. Assim foi com os campos da morte na Alemanha e assim é com as atrocidades da guerra transformadas em práticas cotidianas. Depois que uma sociedade se deixa levar pela ignomínia, talvez pouco restará, além dos próprios juízos que um e outro possa ter, o que não significa necessariamente opor-se ao que agride a consciência. Nesse sentido, vale a pena recordar um trecho dos escritos de Hannah Arendt, que se encontra no livro Eichmann em Jerusalém:
“Desde que a totalidade da sociedade respeitável sucumbiu a Hitler de uma forma ou de outra, as máximas morais que determinam o comportamento social e os mandamentos religiosos — ‘Não matarás! ’— que guiam a consciência virtualmente desapareceram. Os poucos ainda capazes de distinguir certo e errado guiavam-se apenas por seus próprios juízos, e com toda liberdade; não havia regras às quais se conformar, às quais se pudessem conformar os casos particulares com que se defrontavam. Tinham de decidir sobre cada caso quando ele surgia, porque não existiam regras para o inaudito”[8].
O Brasil tornou-se um país impotente frente ao avanço da mediocridade, da ignorância, da crise de valores e da oposição sistemática aos princípios da civilização. A aceitação do autoritarismo e do espírito necrófilo tem conduzido a sociedade à anomia. O país que já registrava um nível de violência assustador tem-se mostrado a cada dia ainda mais irracional e brutal. O reforço ao livre uso de armas, ao uso abusivo da força e ao desrespeito às regras básicas da convivência potencializaram a agressividade e o desejo de destruição, que sempre estiveram por aí, mas retidos no interior abstruso dos psicopatas e nos porões escuros da sociedade. A liberdade concedida pelas mídias sociais deu voz ao que jamais deveria falar, porque o obscurantismo e a pulsão de morte destroem a viabilidade da própria dialogia. É como se todas as tampas de esgotos e bueiros se rompessem e lançassem no ambiente dejetos pestilentos tornando o ambiente inóspito para a vida. A angústia de se viver nesse ambiente alquebra a esperança e os ânimos. Não há notícias alvissareiras e cada ato de maldade realizado ou prenunciado – a destruição da educação, dos recursos soberanos do país ou do acesso à saúde pública – tem a força de um tsunami, que atinge, além dos corpos, a autoestima e a disposição necessária para a idealização e construção do futuro.
A transformação de atos perversos em espetáculo é essencialmente a instituição da barbárie ou da selvageria pré-moderna. O suplício do corpo como pena e espetáculo é algo medieval e, dessa forma, o que se pode constatar em atos como o visto em Sergipe é o atraso de um país em que as leis e o sistema de justiça, em suas versões mais modernas, deixam de ter sentido ou de merecer o respeito dos mandatários e da população. A atual situação em que se encontra o país exige mais que a indignação dos poucos que ainda conseguem distinguir o certo do errado. A caminhada em direção à barbárie precisa ser interrompida e isso exige ação política enérgica, bem como a implantação urgente de um projeto civilizatório. Nas atuais circunstâncias, em que se observa a desarticulação da sociedade, o desânimo e a inércia para uma verdadeira correção de rumos, só resta a esperança do último ato de democracia com força suficiente para impor uma barreira à destruição: o voto consciente e mudancista nas urnas em outubro de 2022. Esse talvez seja o último fôlego dos brasileiros antes de ser tragados complemente pela lama ou soterrados pelas ruínas do que poderia ter sido realmente uma nação.
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[7] A SS foi uma tropa de proteção paramilitar vinculada ao Partido Nazista alemão, que se tornou uma das organizações de repressão mais destacada no período nazista. Entre as inúmeras atrocidades cometidas por essa organização, acredita-se que ela tenha sido responsável pela maior parte das mortes registradas durante o holocausto.
[8] Hannah Arendt. Eichmann em Jerusalém: Um Relato sobre a Banalidade do Mal. São Paulo. Companhia das Letras, 1999.
