
Pérfida Rendição
José Mendes de Oliveira
12 de julho de 2025
O lulopetismo no exercício do poder perdeu, mais uma vez, a oportunidade de contar com o apoio popular na sustentação de sua governabilidade. O tarifaço trumpista sobre os produtos brasileiros exportados para os EUA causou comoção, não só por suas consequências econômicas, mas também por vir atrelado à chantagem da anistia para Bolsonaro, ou seja, o presidente norte-americano se imiscuiu em questões internas que são da alçada exclusiva das instituições brasileiras. No entanto, o que parecia ser uma promessa portentosa de mudança de um governo acuado, esfarelou-se na entrevista que o presidente brasileiro se resignou a conceder à Rede Globo. Mais uma vez, preferiu conversar com os agentes do andar de cima, e ignorar a turma do andar de baixo.
Entre as pérolas de uma liderança tradicionalmente contemporizadora ou conciliadora, não foi inesperada, mas muito desestimulante, após um ensaio de reação à brutalidade trumpista, a ideia chocha de recorrer à OMC na base de uma crença falaciosa e ilusória de que os fundamentos da economia global, estabelecidos a partir do final da década de quarenta, ainda permanecem firmes e fortes. A coisa é ainda mais estranha quando se observa que o próprio presidente havia admitido, em recente artigo divulgado na mídia internacional, a perda de credibilidade da ONU e o esvaziamento da OMS. Então, por que buscar esse organismo, quando ele se encontra desacreditado? O discurso soa como mais uma expressão do institucionalismo vazio ou da mesma retórica que alimenta o republicanismo em terras brasileiras.
Ademais, a busca pela calmaria quando a situação requer mais que estratégias diplomáticas, tornou-se uma marca estrutural do lulopetismo: fugir do conflito como o diabo foge da cruz. Por essa razão, marcos importantes, do ponto de vista teórico-conceitual e prático, para entender e reagir à dinâmica das sociedades regidas pelo capital, deixaram de ter sentido no universo lulopetista. O enfrentamento do imperialismo desbragado de Donald Trump requer mais que diálogos acordados com as elites empresariais brasileiras, porque o país não pertence só aos donos do capital, mas, quer queira quer não, também aos que trabalham ou que correm atrás do trabalho para sobreviver, ou seja, aos excluídos da festa dos plutocratas.
Na entrevista concedida à Rede Globo, em substituição ao que deveria ser um pronunciamento à Nação, o presidente parece ter reiterado a postura burocrática de uma liderança que desconhece, ou quer desconhecer, o jogo da geopolítica mundial. A resposta à agressão norte-americana, que esconde muitos e variados interesses de uma potência decadente, foi reduzida à constituição de uma comissão de negociação juntando governo e empresários, à busca de novos mercados e à autonomia do Itamaraty para convocar ou não o representante da embaixada norte-americana no Brasil. O país perde a chance de ser um protagonista relevante no xadrez internacional, particularmente no contexto do Sul Global, bem como a oportunidade de combater internamente, de forma enérgica e definitiva, uma extrema direita que pratica crimes de lesa pátria impunimente.
Os adeptos do lulopetismo e os aguerridos lulaminions podem alegar que a genialidade política do presidente visa, em verdade, garantir os empregos ao buscar resguardar os interesses dos empresários, mas a realidade pode ser interpretada de forma menos franciscana. A pretensa genialidade parece ter apenas um alvo no horizonte: as eleições de 2026. O mais atordoante é que tudo indica uma opção por repetir a fórmula da frente amplíssima, o que requer a renovação do casamento com segmentos das elites brasileiras. O jogo é arriscado, tendo em vista o caráter dúbio dessas elites autocráticas, o que pode ser entendido de forma mais prosaica como algo semelhante a optar por dormir com o inimigo. De qualquer forma, é esse amante dúbio e cruel, que define o jogo.
O que fica evidente neste momento, além da já assumida aversão às bases populares, é a recusa do lulopetismo de travar a disputa política com uma perspectiva de futuro para o país. Falta utopia, falta projeto nacional e sobra o imediatismo de quem deseja ardentemente o poder, mas não sabe o que fazer com ele, a não ser alimentar o carreirismo político e beneficiar aqueles que se esbaldam, há muito tempo, em um carnaval de privilégios. A agressão de Donald Trump criou a oportunidade para se estabelecer a unificação do país em torno de uma bandeira legítima: a defesa da soberania. A partir dessa bandeira o governo poderia redirecionar suas orientações nos planos econômico e político, mas rejeitou essa possibilidade em prol da mesmice e da rendição que o caracteriza.
O que sobra para o futuro é a descrença e o medo. O lulopetismo pode até ganhar as eleições em 2026, mas o que virá depois? A insistência na política de austeridade econômica e a ambiguidade em relação às tendências da geopolítica mundial - inclusive no que se refere ao debate dentro dos BRICs sobre o enfrentamento ao imperialismo norte-americano -, atola o país cada vez mais na paralisia da mesmice, e a persistir a situação não haverá algo muito diferente de um processo cada vez mais agressivo em torno das opções neoliberais. Caso essas opções sejam agudizadas, não demorará muito para que os restolhos dos direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988, abrangendo as áreas da educação, saúde, trabalho, moradia, previdência social e assistência, sejam reduzidos a cinzas. Nesse caso, o sonho da extrema direita de colocar em prática uma agenda mileisista no Brasil[1], talvez se torne, de uma forma paradoxal, realidade muito antes de 2030.
____________________________
[1] É importante destacar que, no plano interno, a referida agenda gira em torno de uma visão neoliberal radicalizada, cujo foco é o estado mínimo, privatização de empresas estatais, corte dos gastos públicos voltados para a implementação de políticas públicas e sociais, desregulamentação e dolarização da economia. No plano externo, defende-se o total alinhamento com os interesses do decadente imperialismo norte-americano, bem como a existência exclusiva de um mundo bipolar.
