
Consciências Tuteladas
José Mendes de Oliveira
01 de fevereiro de 2023
Os mais recentes acontecimentos de natureza golpista em Brasília podem sugerir, à muita gente, que o ocorrido se deve ao fenômeno bolsonarista, ou seja, à expansão da extrema direita no país como expressão política organizada (inclusive com militantes nas ruas comicamente uniformizados). Para muitos, tais manifestações são atribuídas ao neofascismo, alardeado por esses extremistas com saudades de Plínio Salgado. Entretanto, ao considerarmos o que seria realmente a pauta de reivindicações dos golpistas, nada se assemelha com aquilo que a atual extrema direita em outros países defende: barreiras para migrantes e xenofobia como direito de expressão, estado mínimo, mercado sem regulação, defesa de valores tradicionais e da propriedade privada, nacionalismo extremado, entre outros. Os extremistas brasileiros têm apenas um mote em torno do qual orbitam: a volta dos militares ao poder ou o regime de exceção. É um saudosismo estranho que mistura a saudade do integralismo e do golpe de 1964. O mais interessante é que a maioria dos manifestantes que ocupou as áreas em frente aos quartéis não tem a vivência e muito menos a clara noção do que seja uma ditadura. Defende os absurdos que formula e matraqueia como direito de expressão, inclusive a defesa de um regime em que esse direito certamente não seria admitido. Em sua grande maioria são figuras bizarras, mas, observando-se com atenção, o comando da malta envolve gente muito graúda e muito bem informada das elites nacionais. Essa gente poderosa sempre esteve presente na história brasileira como titereiros e eminências pardas. O exemplo mais evidente é o agronegócio, que traz em suas raízes históricas o conluio entre as antigas oligarquias e o poder militar, que viabilizou a república brasileira em seu nascedouro. Portanto, nada de novo.
Também não há novidade no que se refere às margens de articulação do governo da Frente Ampla ou Democrática. Estamos cientes que, diante do avanço do bolsonarismo, outras alternativas estavam descartadas, particularmente quando se observa a fragilização das esquerdas e dos movimentos sociais no país. O PT ou qualquer outro partido mais à esquerda não conseguiria isoladamente fazer frente à barbárie bolsonarista. O que restou foi o possível com a Frente Democrática. Esse arranjo vai repetir, em quase todos os termos, o velho dilema da sobrevivência política e da governabilidade, que envolve e exige os famigerados acordos ou composições no Senado e na Câmara. Não é por menos que se busca a permanência de Pacheco na direção do Senado e de Arthur Lira, um bolsonarista devotado, na direção da Câmara. Teremos um pouco mais do mesmo. E nada mais impressiona, nem o apoio do falso progressista PSDB, que deve direcionar o seu voto ao candidato bolsonarista Rogério Marinho no Senado, demonstrando de que lado esse partido sempre esteve. Na ocorrência de um desastre, com a vitória do bolsonarismo no Senado, o governo despenca de vez no abismo do inferno. Terá que digladiar com o demônio a cada segundo até 2024, ou seja, durante metade do período de gestão. De qualquer forma, a situação é periclitante, tendo em vista que a extrema direita conseguiu eleger considerável número de parlamentares para a gestão que se inicia em 2023 e termina em 2026, principalmente para o Senado. O Governo terá, portanto, que fazer malabarismos para conseguir aprovar seus projetos e viabilizar suas políticas públicas. Entre tantos males, permanece a esperança de que, pelo menos, consiga assegurar a permanência do estado de direito e os princípios da democracia protegidos de forma que o país possa, no pleito de 2026, ainda ir às urnas e eleger alguém que não esteja disposto a instaurar uma nova ditadura no país. Paralelo a isso, alimenta-se a esperança de que o Judiciário, agindo mais uma vez como o xerife da vez, possa tornar inelegível a besta-fera que jogou o país neste horroroso abismo. Isso tudo pode ser visto, ao mesmo tempo, como esperança e um jogo de lances e de resultados incertos. O fato é que parte dos fascistas bolsonaristas, de orientações dúbias e menos ideológicas, é historicamente venal e, portanto, pode estar aberta a acordos, desde que auspiciosos para os seus interesses mesquinhos. Aqui, também, nada de novo. Porém, haverá aquela ala radical e embrutecida, capaz de lançar-se como os kamikazes sobre punhais, e esses não se descuidarão de uma oposição raivosa e permanente, obviamente de baixíssimo nível. Não se espera inteligência e civilidade de brucutus. As ameaças continuarão principalmente por intermédio das mídias sociais. Mais uma vez, nada de novo.
Além do desafio de cumprir promessas de campanha e viabilizar as políticas públicas, o novo governo ainda deve arrumar a casa, ou seja, remontar as bases institucionais destroçadas no desgoverno bolsonarista. A capacidade de destruição da malta foi extraordinária: conseguiram arrebentar com o arremedo da república tupiniquim no espaço de quatro anos. Reconstruir a partir de destroços, no mesmo espaço de tempo, é evidentemente uma tarefa hercúlea. Talvez o governo da Frente Ampla não consiga cumprir na totalidade esse desafio. Entretanto, o que mais preocupa são os possíveis arranjos para garantir a governabilidade, ou seja, como serão as composições, as promessas, as trocas com partidos políticos ou ainda mesmo com políticos isolados, que parecem ter se degenerado ainda mais nas últimas décadas? O certo é que o mar não está para peixe e será muito mais difícil driblar as armadilhas e as tentações dos acordos tenebrosos. Esse balanço entre o ruim e o menos ruim talvez seja possível com a experiência acumulada por Lula, que já viu de tudo um pouco em se tratando da política tupiniquim e talvez consiga separa com prudência o joio do trigo. Mas isso é apenas uma suposição, porque a realidade é mais cruel. O que o velho sindicalista ainda não conseguiu driblar, assim como boa parte dos progressistas tupiniquins, é a excessiva presença da caserna na esfera da política, que tudo fez para impedir o seu retorno ao poder (muita gente da reserva e também da ativa engrossou, de acordo com notícias veiculadas na imprensa, a bárbara destruição dos prédios dos Três Poderes!). Essa será uma pedra no sapato apertado, que não sairá do lugar e trará muitos ferimentos nos pés. Exemplo evidente pode ser visto no caso do GSI. Tendo em vista a constatação de que os militares do Gabinete de Segurança asseguraram o acesso dos patriotas baderneiros no Palácio presidencial na intentona golpista, o que se esperava, no mínimo, era a limpeza geral do gabinete e sua transformação em outra coisa menos ameaçadora. Porém, feitas algumas alterações aqui e acolá, de acordo com a imprensa, o Presidente nomeou 122 militares para a sua segurança. Isso é no mínimo intrigante, quando se observa que nos EUA, uma democracia mais consolidada se comparada com a brasileira, quem faz a defesa de presidentes e ex-presidente é o United States Secret Service, uma agência federal constituída por profissionais civis com significativa formação acadêmica. Em outros termos, profissionais para os quais o cérebro é mais relevante que os músculos, que fardas e armas penduradas na cintura. A propósito, a discrição deve ser outro atributo desse pessoal, contrastando com os excessos de galardões das tropas tupiniquins.
O fato é que o Brasil não mudou e nem vai mudar, enquanto abraçamos satisfeitos, por falta de opção, azar ou preguiça macunaímica, as opções de meio termo. Vivemos como gente que tem cólicas intermitentes. Infelizmente a história não nos presenteou com uma mudança estrutural verdadeira (uma revolução como diria um velho como eu) e, portanto, todos os hábitos, todos os vícios, todas as manhas e artimanhas se cristalizaram em uma cultura do reacionarismo, do autoritarismo e da falta de coragem cívica (o que seria isso?). Do seu passado escravocrata, o país herdou a falta de compaixão e o prazer do sadismo, a banalização da exclusão social e o deliciar-se com a dor dos pobres e miseráveis. Brasileiro nunca foi bonzinho, a não ser em piadas e em programas humorísticos da televisão. É por isso que não consegue comover-se com a dor de um pobre, de um negro, de um pardo ou de um indígena esquálido e faminto, a não ser no ápice de uma campanha, de uma foto para o jornal, de um lance para a TV ou de um momento em que possa demonstrar o valor do seu espírito cristão como se faz na condescendência de uma oferta ou de um dízimo na igreja. Vale a pena garantir algo junto ao divino, quando não se sabe com muita certeza se ele existe, nesse caso garante-se a boa vizinhança com o padre ou com o pastor. O brasileiro é festeiro, gosta de fornicar, de beber, de se gabar e de gargalhar, mas detesta se comprometer. Por isso é dado ao deixar para lá. Faz parte dessa forma de ser não se lembrar em quem votou no dia seguinte ao pleito. O negócio é, como se diz, cumprir tabela e pronto. Da mesma forma, não gosta muito da disciplina, que um dia pode limitar os seus próprios atos. Por essa razão, é que observamos muita gente, inclusive da conhecida esquerda, condenando o pacote de medidas de segurança proposto pelo Ministro Flávio Dino. O mais interessante é a postura de muita gente, que antes clamava por alguma regulação, mas que agora considera perigosas as propostas de mudanças legais para criminalizar condutas na Internet, particularmente as que configuram a prática de atentado contra o Estado Democrático de Direito. A reviravolta de muitos que admitiam certos limites nas redes deve-se agora a um repentino medo. Imaginam que o feitiço pode se voltar contra o feiticeiro e a coisa se tornar um limite ao direito de expressão. Por mais engraçado que possa parecer, esse sempre foi o argumento da extrema direita, de seus minions e terroristas. No meio de idas e vindas, a gente não sabe mais o que é o certo e o que é errado, e a única certeza que permanece é a de que o brasileiro gosta da ambiguidade. Essa situação é confortável porque dispensa responsabilidades, compromissos e o perigo de ter que assumir equívocos.
A natureza do que é gelatinoso, nem sólido nem líquido, sempre incomodou a consciência e o tato humano. Porém, esse parece ser o estado natural de uma sociedade que nunca marcou fronteiras entre o público e o privado, que sempre evitou o universalismo das leis e que sempre estendeu a mão para acordos espúrios. O jeitinho brasileiro é elogiado, principalmente na arena política, como sinônimo da capacidade de negociação, mas, em verdade, ele é a expressão mais significativa da resiliência, da falta de coragem para o rompimento, para a admissão do contraditório e para a transformação. A veia reacionária pulsa mais forte e a resignação é a síntese do pressuposto de que na ordem se encontra o progresso, expressão de um positivismo raso e hipócrita. Na arena política, a figura nefasta do Centrão talvez seja a expressão mais adequada do conservadorismo tupiniquim, de um balcão de negócios que permite a permanência das coisas. As bancadas corporativistas e o baixo clero do parlamento, organizados em uma turba de mercenários, retratam uma sociedade que nunca soube o que é compartilhar objetivos e o que significa o exercício da cidadania. Em outras palavras, somos uma democracia capenga, que facilmente naturaliza fenômenos como o bolsonarismo e suas variantes neofascistas, porque há muitos entre nós dispostos a colocar uma suástica nos braços e saudar aos berros pequenos ditadores. O viés conservador e autoritário, infelizmente, perpassa todos os segmentos sociais e contamina todas as organizações, entre elas a imprensa, os sindicatos, os movimentos sociais e os partidos. A fogueira das vaidades e as desavenças pelo poder estão em todos os lugares e se acentuam na medida que o individualismo é acirrado pelos modismos do pensamento econômico neoliberal (meritocracia e cada um por si!). Não será surpreendente, se daqui a pouco, começarmos a registrar intrigas dentro da própria Frente Ampla, disputas regionais (entre petistas paulistas e baianos por exemplo), incompatibilidades com liberais e seus interesses, traições e novas tentativas de golpes parlamentares. Não faltará, para tanto, a torcida fervorosa dos fascistas resistentes. Nada é tão sólido no Brasil que não possa se dissolver com uma brisa. No fim resta a melancólica ciclotimia de um país que patina e não sai do lugar. Mantemos vícios, e poucas virtudes, que nasceram nos primórdios do país. A velha colônia portuguesa se perpetua na sua lógica de organização, de exclusão e de reprodução. Por essa razão não é estarrecedora a notícia de que o país ainda mantém trabalhadores em condições de escravidão em pleno século XXI. A notícia poderia ser um caso isolado, mas os casos são muitos e corriqueiros. Os mais gritantes são encontrados no famigerado agronegócio, na construção civil, na indústria da moda e nos serviços domésticos, ou seja, heranças de uma matriz que remonta a escravidão dos negros africanos. O país não é só tutelado pela voracidade política e violência de seus militares anacrônicos, é também tutelado pela sua própria ignorância e pobreza de espírito. No fim é mais uma tribo exterminada, é mais uma criança negra baleada, é mais um gay discriminado, é mais uma mulher espancada, é mais um morto no asfalto e, no final das tardes, algum Datena em cópia ou no original distrai os sádicos com cenas de sangue televisionadas e aplausos efusivos para policiais violentos. O Brasil é essa coisa. O Brasil é bizarro, monstruoso, melancólico e assustador.
