
Abaixo as Elites Tupiniquins
José Mendes de Oliveira
08 de outubro de 2021
O Brasil se esvai a cada dia como uma remota possibilidade de estado de direito e democracia, mas também como possibilidade de uma sociedade respeitável perante o mundo. Não obstante a preexistência de desigualdades estruturais persistentes, desde o nascedouro da terra brasilis, houve uma pequena e breve esperança de uma sociedade civilizada após a Constituição de 1988. Toda essa esperança está escoando de forma acelerada para o ralo. Em boa parte, o desastre se deve ao ideário e ações da extrema direita, que se reinaugura no espaço político brasileiro nos moldes dos modelos autoritários da primeira metade do século XX, ou seja, por intermédio do voto e da recorrência ao bonapartismo. A chegada ao poder é, de uma forma estranha mais não contraditória, a oportunidade para destruir as bases da democracia, que serviu ao propósito dessa conquista. No caso brasileiro, o ideário extremista associado com a agenda neoliberal, por mais bizarro que possa parecer, coloca em prática uma espécie de anarquismo anti-humanista em que o antagonismo às instituições não almeja a utopia de uma comunidade humana autêntica, mas uma situação em que o individualismo e o vale tudo do capitalismo selvagem tupiniquim possam reinar sem qualquer tipo de barreira ou contenção, o que permite entender em parte a ojeriza ou aversão a um Poder Judiciário republicano e não alinhado (infelizmente muitos representantes desse Poder abraçam a agenda da extrema direita). Na base dessa orientação encontra-se o radicalismo de um darwinismo social sem limites, que justifica a naturalização de todas as desigualdades, injustiças e práticas genocidas. O discurso dos acólitos do extremismo à direita causa muita confusão, porque geralmente faz uso dos instrumentos democráticos, ainda que tomados de forma invertida, para legitimar as próprias práticas. É dessa forma que o direito de expressão passa a ser o direito de proferir impropérios, denegrir opositores políticos, expressar preconceitos, criar inimizades em estado permanente de beligerância e atuar abertamente para destruir as bases do direito de expressão. Parece ser coisa de louco, mas não é. O imbróglio tem um propósito muito claro: instituir uma ordem plutocrática em que a lei só exista para controlar e suprimir manifestações heterodoxas. A coisa é extremamente corrosiva, porque envolve a naturalização e ampla aceitação de uma ordem autocrática, o que se sustenta apenas na situação de um povo ignorante, calado e escravizado. Daí o desinteresse pela ciência, pela educação, pela verdade dos fatos e pela ampla difusão do conhecimento. O povo mantido como rebanho é o caminho mais fácil e eficiente para a manutenção da dominação.
O caráter depredatório do capitalismo tupiniquim reflete a face e as entranhas das próprias elites do país, que almejam a riqueza sem esforço e sem a devida compensação à sociedade. Daí os estratagemas para não pagar impostos[1], entre os quais se destaca a fuga de capitais para paraísos fiscais[2], além da busca crescente da diversificação dos negócios em direção ao mercado financeiro. Em outras palavras, a maioria dos ricos brasileiros se beneficia, cada vez mais, do rentismo ou da especulação financeira[3]. O parasitismo desses segmentos depende da manutenção de cães de guarda fieis na burocracia pública, de uma mídia cumpliciada (ela também com interesses no referido mercado)[4] e de uma classe política venal. Historicamente, as elites brasileiras nunca olharam para o país como pátria, mas sempre como o eldorado a ser explorado até a exaustão. Essa percepção é válida para todos os setores econômicos e, particularmente, para aqueles que depositam suas fortunas em paraísos fiscais. O país se esvai porque é muito difícil conceber uma sociedade sem o mínimo de coesão social, solidariedade e autoestima. O falso nacionalismo dos que trajam camisetas futebolísticas e se enroscam na bandeira brasileira, agora entrelaçada às bandeiras norte-americana e israelita, não transcende a corriqueira carnavalização do país que consegue transformar em piada de mau gosto a mais trágica das situações. Há muito tempo que o tecido social se esgarça e que o brasileiro tropica em sua própria língua, refuta sua história e mimetiza seu americanismo bastardo. Pensar a realidade se tornou um fardo e aderir aos devaneios da extrema direita é apenas mais um detalhe na caminhada para o abismo. O país abençoado por deus tem agora a oportunidade de mostrar a verdadeira face com a sua intolerância, racismo, indiferença e pobreza de espírito. As elites já não têm a necessidade de esconder o que são por detrás de jargões do politicamente correto. Desbragadamente colocam em riste o dedo do meio e mandam os desafetos para o quinto dos infernos. A deselegância não é a distorção de nouveaux riches desambientados ou mal educados, mas a mais genuína demonstração do que são e pensam em essência: acreditam na falta de limites porque têm o poder do dinheiro e da força bruta. As elites tupiniquins são o suprassumo da anti-civilização e do anarcocapitalismo na sua versão terceiro mundista.
A podridão dessas elites se esparramou pela sociedade brasileira como chorume e tornou-se padrão de referência e conduta. Para isso tem contribuído a mídia com suas novelas que falseiam a realidade, com seus realities shows deprimentes e com seus noticiários tendenciosos. Toda essa porcaria foi entremeada e legitimada pelo avanço da religião transformada em ativo do mercado. Não é por outra razão que se pode constatar, de forma surpreendente, o contraditório entrelaçamento de valores cristãos com o ideário da extrema direita. Dessa forma, paulatinamente, o mal tem se banalizado na sociedade brasileira, não como algo a se combater, mas como virtude[5]. As chances de uma sociedade sobreviver regida pelo princípio do mal não são muito grandes. O mal é por natureza corrosivo e demolidor. O individualismo apregoado no contexto do capitalismo selvagem tupiniquim é inferior ao conceito burguês ou liberal, porque ele rompe com a possibilidade da reflexão e da autonomia do sujeito. Não há espaço para um projeto de civilização onde impera a irracionalidade, o ódio, o estado permanente de beligerância e a heteronomia do indivíduo. Essa é a ordem do não reconhecimento do sujeito e de interdição de qualquer tipo de intersubjetividade construtiva. A única hipótese viável para o resgate da sociedade brasileira, dentro de padrões civilizatórios, é o rompimento com o projeto destrutivo das elites. Nesse sentido é urgente a construção de discursos e práticas, que se contraponham à desconstrução de uma utopia necessária: a de uma sociedade coesa, solidária e promissora. O projeto de uma civilização brasileira precisa ser retomado, não como fantasia tresloucada, mas como ação política viável de combate à distopia. Para tanto, é preciso que todos os esforços convirjam para a construção da cidadania e do bem-estar dos filhos da terra brasilis. Talvez essa seja a única possibilidade e chance para conter o escoamento e evitar que o país desapareça definitivamente pelo ralo ou descambe para o esgoto. Em suma, é necessário que se faça, como na ficção de Bacurau, a resistência necessária com base na própria história, na comunhão dos diferentes, mas não desiguais, e na identidade de uma sociedade que se recusa a ser tratada como pária. Essa é certamente a tarefa inadiável, que cabe a todos que não se alinham com o obscurantismo tupiniquim. Tomara que sejam a maioria no pleito de 2022 e que possam ser muitos mais nos anos vindouros.
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[1] https://www.cnnbrasil.com.br/business/ricos-no-brasil-pagam-imposto-de-renda-mais-baixo-que-em-65-paises/ (consulta em 07/10/2021).
[2] https://www.redebrasilatual.com.br/economia/2021/10/paraisos-fiscais-politica-economica-brasil/ (consulta em 07/10/2021).
[3] https://diplomatique.org.br/quem-produz-e-quem-se-apropria-o-poder-do-rentismo/ (consulta em 07/10/2021).
[4]https://www.poder360.com.br/pandora-papers/da-familia-marinho-aos-donos-da-jp-empresarios-de-midia-estao-ligados-a-offshores/ (consulta em 07/10/2021).
[5] Nesse caso, entendemos a banalização do mal no sentido arendtiano como o fenômeno de recusa do caráter humano do homem por meio da negação da reflexão e da autonomia, que permitem ao sujeito reconhecer e assumir a responsabilidade por seus próprios atos.
