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O Coringa e o Batman de 2022

José Mendes de Oliveira

27 de maio de 2022

A gente quando se alimenta em demasia fica empanturrada. Essa é uma palavra engraçada porque transborda a imagem do seu próprio sentido: é possível quase enxergar a panturra próxima da explosão (assim como o gordo insaciável criado pelo incrível Monty Python em o Sentido da Vida). Entretanto o que se abarrotou foi meu cérebro. Tantos anos sob o bombardeio da cultura industrializada norte-americana veiculada no rádio, na TV, no cinema e em todas as mídias que se possa imaginar atuando em um país colonizado (particularmente onde existe algo como a Rede Globo), além de reconhecer a minha incompetência (ou resistência) para aprender o inglês de forma decente, fiquei zonzo ao ponto de não aguentar mais ouvir falar no próximo enlatado pseudo-identitário da Marvel. Ademais, creio que o excesso de ação e pirotecnia dos efeitos especiais têm me deixado mais angustiado e mais desejoso de um espaço cênico com aspecto humanista, interativo e dialógico. Para muita gente, já viciada no padrão hollywood, ser submetida a três minutos de diálogo é uma tortura, porque tudo começa e termina com correria ou explosões (ou com uma câmara maluca, aflitiva, que roda sem objetivo seguindo o cânone da Bruxa de Blair), mas eu passei a sentir falta de algo talvez mais teatral. Isso é possível no cinema? Talvez não.

Então, de repente, comecei a prestar mais atenção nas coisas feitas do outro lado do mundo, o que significa transpor o odor da naftalina europeia[1], e ir um pouquinho mais para o leste. Eu já admirava muita coisa realizada na cinematografia chinesa e japonesa (a exemplo dos admiráveis e inesquecíveis trabalhos de Akira Kurosawa, com destaque para os dois que são meus prediletos: Viver e Sonhos), mas acabei me encantando com as produções coreanas, assim como passei a admirar as reflexões filosóficas de um certo Byung-Chul Han, que vive na Alemanha e não tem nada a ver diretamente com cinema, mas que também é coreano. Mas de volta aos filmes, atualmente, sempre que posso, assisto produções coreanas de toda espécie, ou seja, do drama ao terror. Por essa razão, embora não saiba sequer como se pronunciam os nomes, começo a reconhecer, pelo menos nas fotografias e imagens como fazem as crianças muito pequenas e os analfabetos, alguns diretores, atrizes e atores. Entre as produções há, obviamente, aquelas que despontam e circulam sob a luz dos holofotes como acontece com os filmes norte-americanos – a exemplo de Parasita (dirigido por Bong Joon-ho) e Round 6 (dirigido por Hwang Dong-Hyuk) -, mas há coisas menos conhecidas como A Testemunha (dirigido por Jokyoo-Jang), Invasão Zumbi (dirigido por Yeon Sang-ho) e Mãe (dirigido também por Bong Joon-ho), entre outras. O último que assisti chama-se Testemunha Inocente, dirigido por Lee Han, que talvez muita gente possa encarar como um choroso e vulgar dramalhão, mas esse tipo de julgamento, do meu ponto de vista, não faz jus ao drama e às reflexões importantes que suscita sobre a questão das diferenças (incorporada no dilema de uma adolescente autista) e do papel que a justiça e os advogados devem exercer sem distanciar-se dos princípios da ética e do compromisso com a verdade e respeito ao ser humano[2].

Entretanto, o meu objetivo não é contrapor de maneira excludente o cinema ocidental e o cinema oriental, até mesmo porque ainda é possível encontrar boas produções nos países europeus (caso do filme dinamarquês, O Bombardeio, dirigido por Ole Bornedal) e obviamente na dominante fábrica cinematográfica norte-americana (além do resto do mundo: América do Sul, Oriente Médio e África, por exemplo). Em relação à produção norte-americana, gostaria de destacar os dois últimos filmes que me chamaram a atenção: Joker (Coringa) e Dont’ Look Up (Não Olhe para Cima), o primeiro dirigido por Todd Phillips, que assina o roteiro juntamente com Scott Silver, e o segundo escrito e dirigido por Adam McKay. Eu gostaria de destacar Joker como pretexto para discutir um outro trabalho – The Batman – na versão de 2022 escrita por Matt Reeves em parceria com Peter Craig e dirigido por Reeves. O filme tem sido aplaudido por muita gente, mas eu não gostei e penso que ele é, intencionalmente ou não, uma resposta reconciliadora ou pacificadora em relação ao que é apresentado em Joker. No filme de Todd Phillips o antagonismo de classes em Gotham City é escancarado e Batman ainda não existe, é apenas o projeto que se anuncia pelo estado de violência que gera o Coringa e também gerará o homem morcego movido por vingança. Em Joker a tensão é permanente, porque o sistema social desigual não permite situação diferente, e isso pode ser percebido inclusive na trilha sonora conduzida pela violoncelista e compositora islandesa Hildur Ingveldar Guonadóttir, destacando-se as composições Call me Joker e Defeated Clown, que sugerem um misto de trilha marcial e marcha fúnebre, algo tão pesado quanto a atmosfera de Gotham City e a jornada trágica da criança violentada, que ri involuntariamente de sua própria condição como um chiste nervoso pronto para irromper na mais pura e genuína violência (por detrás do irônico apelido de Feliz esconde-se a figura trágico-cômica de um ser humano dilacerado por sua condição social).  

No Batman de 2022, o morcego vingador, mais solitário que suas cópias apresentadas em outros filmes, tem apenas como aliados de confiança o mordomo Alfred Pennyworth e o Tenente James Gordon, além de uma promessa de romance com uma personagem que sugere ser a mulher gato – Selina Kyle -, ainda que pareça ser mais adequado chama-la de mulher dos felinos abandonados. O que há de novo nessa refilmagem, além do traje mais pesado e esgarçado do homem morcego (como se o traje trouxesse mais cicatrizes que o corpo por ele evolvido), é um Bruce Wayne atormentado e próximo de descobrir que o seu amado pai Thomas Wayne, cujo assassinato justifica a ira do vingador, mantinha boas relações com os mafiosos de Gotham City. A descoberta é realizada passo a passo, graças à intervenção do Charada (um ex-morador de orfanato), que montou uma trilha de pistas enigmáticas para expor o nome da família Wayne (que deveria manter filantropicamente o orfanato, mas não o fez). No entanto, depois de quebrar a cara em várias ciladas montadas pelo vilão, o homem morcego sequer age como protagonista na prisão de seu adversário, que elabora o próprio ardil de seu encarceramento em Arkham. Para tornar mais trágica a situação, Batman vai à prisão-manicômio e descobre, em mais uma pegadinha do maluco, que Gotham City está cercada por bombas e uma milícia de órfãos vingadores está pronta para acabar com os mafiosos, mas também com a nova prefeita da cidade (uma afro-americana defensora das práticas filantrópicas) e seus ricos simpatizantes.

A explosão das bombas provoca a inundação de Gotham como se um dilúvio concretizasse um processo divino de redenção dos pecados à semelhança do que ocorreu com Sodoma e Gomorra, que em castigo sucumbiram ao fogo e enxofre, aliás bem mais destrutivos. O corruptor de Thomas Wayne é executado por um miliciano e a prefeita é ferida, mas sobrevive para dar vida aos seus projetos filantrópicos. No meio de toda a confusão, Batman se sente aliviado: em primeiro lugar por perceber que o Charada, contra todas as possibilidades e beirando as raias do absurdo, não percebeu a sua verdadeira identidade de Bruce Wayne e, segundo, porque teve a explicação sincera de um hospitalizado Alfred, também vítima das crueldades do louco amante de pegadinhas, que Thomas Wayne foi obrigado a se envolver com a máfia para salvar a reputação da esposa e garantir a segurança da própria família[3]. Redimido e aliviado, porque seu pai pode permanecer em sua memória como grande homem, Batman auxilia os cidadãos de Gotham e conclui que a vingança não é a forma mais adequada de agir neste mundo. A vingança dá lugar ao sentimento cristão da boa vontade e do auxílio ao próximo.

Do outro lado, encarcerado na prisão-hospício de Arkham, o Charada conversa por meio de pegadinhas com um vizinho de cela, que, pode-se presumir, talvez seja o infeliz Coringa. Esses não foram redimidos porque ainda alimentam, em meio à loucura, o desejo de vingança. A eles não foi dada a mesma chance que é dada a Bruce Wayne de saber que o pai, não obstante o envolvimento com os ricos mafiosos da cidade, era um bom homem, que só arrebentou com as barreiras da moral em prol da família. Charada sequer teve uma família ou um pai em relação ao qual pudesse alimentar memórias boas ou más e Coringa foi seviciado por um padrasto violento na versão apresentada em Joker. No que se refere à condição de Bruce Wayne, fica evidente que há dois comportamentos morais admitidos à burguesia de Gotham: o condenável porque se reduz ao acúmulo de riquezas sem compromisso filantrópico (como ocorre com os mafiosos Pinguim e Carmine Falcone) e o perdoável porque, além de envolver o exercício da filantropia, vem em socorro da família e dos bons costumes[4].

Tudo isso é obviamente um freio à radicalização da ação vingadora que se encontra presente nos casos do Coringa e do Charada. As duas personagens não buscam justificar suas ações desordeiras em um trauma familiar e não têm motivos para perseguir gangues urbanas para apaziguar a ira de um pai assassinado, mas buscam vingar-se do abandono e da traição de uma ordem social (simbolizada na figura do prefeito, dos empresários, do promotor, do comissário de política e dos policiais corruptos) e, para tanto, as próprias gangues podem ser funcionais ou a única possibilidade de agrupamento próxima de um conceito de família (assim como as máfias). Bruce Wayne convive sem traumas com seus pares corruptos e com os criminosos de colarinho branco e tudo indica, ainda que saiba da corrupção que o rodeia, que permanecerá como o vingador da ordem: agora não mais legitimado pela morte do pai, mas por um estranho sentimento de solidariedade com Gotham City. Em verdade, o Batman de Matt Reeves parece ser mais condizente com a postura social da maioria dos norte-americanos, que admite as distorções da sociedade de classes, mas não abre mão do sistema. Por esse viés, as grandes fortunas são fruto do empenho e da meritocracia, e os problemas sociais e morais advindos podem ser compensados com a filantropia, com o respeito à ordem (ainda que revestida de hipocrisia) e na defesa intransigente do consumismo, da padronização do mercado e da democracia liberal na versão do dualismo partidário. Nessa história não cabem Coringas e Charadas como possibilidade de questionamento do status quo, ainda que possam ter alguma razão. Para eles sempre haverá a truculência dos justiceiros ou dos cavaleiros sombrios, cobertos por uma fantasia ridícula ou por um uniforme policial, e a segurança dos muros lúgubres de algum Arkham.   

 

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[1] A Europa que já foi o centro do mundo tem perdido não só protagonismo político, do meu ponto de vista, mas também importância cultural ao se dobrar a um processo de americanização, que transcende o consumo da carne prensada do Mac Donald e das bolhas de gás da Coca-Cola, e se traduz no exagero da russofobia e na melancólica defesa da anacrônica Otan.

[2] No caso do Testemunha Inocente há uma passagem interessante em que a adolescente autista, após revelar o seu desejo de ser uma profissional do Direito, pergunta ao advogado se ele é uma boa pessoa. A pergunta traz a condição do bom profissional para uma situação anterior à manipulação de conhecimentos, de técnicas e das relações de poder. A condição de um bom advogado, em verdade, requer uma espécie de caráter ideal e a condição basilar da pessoa como um ser essencialmente bom, que possivelmente a filosofia helênica colocaria na mesma dimensão do ser belo, ou seja, a perfeição, a harmonia e o equilíbrio como aspectos também constituintes da ética. Aspectos que sumiram do ideário ocidental em quase todos os setores da vida. 

[3] A esposa de Thomas Wayne teria parentesco com a família Arkham e sofrera de problemas mentais. Essa situação passa a ser explorada por um jornalista quando Thomas Wayne se candidata a prefeito de Gotham. Buscando esconder essa situação familiar, Thomas Wayne solicita a ajuda do amigo mafioso Carmine Falcone, que manda assassinar o jornalista. De acordo com a fala apaziguadora de Alfred, o mordomo, Thomas Wayne não sabia que Falcone chegaria ao extremo de um assassinato, ou seja, ele estabelece a ingenuidade e inocência do magnata em prol do conforto emocional de Bruce Wayne.

[4] Falcone demonstra a sua condição de mau caráter no abandono da própria filha – que a propósito é a suposta mulher gato -, à própria sorte. Em vingança, o principal objetivo da filha abandonada é furtar o dinheiro sujo do pai mafioso, que julga ser uma forma legítima de compensação.

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