
Onde ficam os colonizados?
José Mendes de Oliveira
03 de março de 2022
Costuma-se afirmar que, em período de guerras, a verdade é o primeiro valor sacrificado e, certamente, isso tem acontecido no atual conflito entre a Rússia e a Ucrânia, país que tem cumprido com competência o seu papel de marionete dos EUA, da Europa decadente e da anacrônica OTAN. Os EUA se contorcem da forma que podem para manter o poder hegemônico e imperial estabelecido, de acordo com a megalomania que os caracteriza, a partir da década de 80 com o desaparecimento da União Soviética. No entanto, para o bem da própria verdade, a destruição desse valor passou a ser uma estratégia de exercício do poder de acordo com as guerras hibridas patrocinadas pelos estadunidenses a partir dos anos 2000. Em outras palavras, mentir e distorcer os fatos passou a ser uma prática sistemática de contrainformação e criação de ilusões favoráveis ao Império. Os anos 2000 já estão consagrados historicamente como aqueles marcados pela intervenção dos norte-americanos em várias partes do mundo na promoção de revoluções coloridas, na instrumentalização do falso combate à corrupção e mobilização política dos sistemas judiciários para a perseguição de opositores políticos. Assim foi na Ucrânia em 2014 com o evento do Euromaidan e também no Brasil com a deposição ou impedimento de Dilma Rousseff em 2016. Esse movimento, que é magistralmente analisado por Andrew Korybko em seu livro – Guerras Híbridas: Das Revoluções Coloridas aos Golpes[1] -, abriu a porta para o protagonismo de movimentos e partidos de extrema direita, bem como para a ação de nazistas e neonazistas, que cumprem papel efetivo no processo de desestabilização interna dos Estados subjugados.
No caso brasileiro é indiscutível o avanço da extrema direita, principalmente a partir de 2016, que conquista o poder pelo voto nas urnas no ano de 2018. Para isso foi fundamental o desrespeito à verdade e o abundante uso das mídias sociais na formulação e difusão de fake news e, sobretudo, a perseguição judicial dos opositores políticos (há evidências de que os EUA tiveram importante participação na promoção do lawfare[2]). Desafortunadamente, o país enfrenta a pandemia da Covid-19 com os extremistas no poder e o resultado, frente ao negacionismo e à insensibilidade, é o registro de 650.000 mortes de pessoas vitimadas pela doença até o momento. No caso da Ucrânia, não se pode desconhecer a ameaça dos batalhões de nacionalistas radicais e nazistas, a exemplo do Batalhão de Azov, que ergue sem acanhamento a suástica nazista e hoje luta ao lado da Guarda Nacional ucraniana[3]. Os membros desse batalhão atuaram como agitadores na denominada Primavera Ucraniana, ocorrida entre 2013 e 2014 com total apoio norte-americano, que no discurso exigia a integração europeia da Ucrânia, mas que serviu ao propósito ocidental de derrubar o governo eleito de Viktor Yanukovych (alinhado à política Russa). O Azov foi também corresponsável pelas atrocidades cometidas nas regiões separatistas de Donetsk e Lugansk - ignoradas pelo mundo ocidental -, bem como pelos ataques em Odessa em maio de 2014, quando 400 pessoas foram feridas e 42 queimadas vivas na sede do Partido Comunista[4]. Pode ser estranho, mas é o que é: hoje o mundo ocidental se levanta em bloco para defender um país que abriga, de forma explícita, os herdeiros do nazismo que a Europa um dia condenou.
O jogo norte-americano é extremamente perigoso não só por querer defenestrar a Rússia do cenário mundial e inviabilizar a ascensão econômica da China, mas por colocar o mundo às portas de uma terceira grande guerra. A aposta é elevada e de alto risco. Nesse contexto, a Europa perde a oportunidade de ser uma protagonista madura e com uma atuação positiva no mundo: prefere se sujeitar aos interesses dos EUA, abandonar a inteligência diplomática e retroalimentar um discurso de ódio e de preconceito étnico. Neste momento, a democracia ocidental expõe a sua hipocrisia e seus pés de barro, porque em nome da paz alimenta a sanha destrutiva da indústria bélica em grande parte localizada nos EUA. O mundo ocidental tem mostrado a sua assustadora face, ocultada pelo discurso da liberdade e da democracia, que evidencia o poder de um big brother intransigente e autocrático. Talvez não seja tão assombrosa a censura aos veículos de imprensa como o Russia Today e o Sputnik pelos norte-americanos e europeus, que pode ser vista, ainda que em afronta à liberdade de expressão, como estratégia de guerra, mas parece totalmente descabida a interdição das equipes esportivas russas por organismos internacionais como a FIS (Federação Internacional de Esqui), FIVB (Federação Internacional de Voleibol), FIFA (Federação Internacional de Futebol), UEFA (União das Associações Europeias de Futebol) e COI (Comitê Olímpico Internacional). Pode ser ingenuidade, mas, mesmo que estejamos defendendo um ideal, arenas esportivas deveriam ser instrumentos para a congregação dos povos e promoção da paz, porém o que se verifica é o contrário. Essas arenas já serviam às grandes transações e à corrupção do mercado esportivo e, tudo indica, agora servem também aos atos de guerra.
Tudo isso é muito desanimador, assim como é acabrunhante assistir os EUA, juntamente com os seus obtusos aliados da Europa, despejando armas na Ucrânia, quando poderiam estar promovendo as alternativas diplomáticas. De qualquer forma, isso não é novidade, quando já vimos inúmeras manifestações de desrespeito praticadas pelos norte-americanos ao direito internacional e à diplomacia pretensamente defendida pela ONU, principalmente nos conflitos gerados no Oriente Médio e na África. No atual conflito, passado o temporal, caso o mundo não seja levado à hecatombe, resta saber com quem ficará todo esse armamento: é possível que boa parte seja apropriada pelos batalhões nazistas, que saberão muito bem utilizá-la em outras circunstâncias e certamente com propósitos muito destrutivos. Talvez se repita a historinha já muito conhecida dos bin ladens, dos kadafis e saddam husseins, criados e destruídos pelos EUA de acordo com os seus interesses mais funestos.
No meio de tudo isso, que papel nos cabe, a nós que não somos integrantes do ocidente? Não somos considerados como tal porque a América do Norte e a Europa nos exclui e se engana quem imagina o contrário devido apenas à posição geográfica. Nós somos os filhos das colônias e não é por menos que a imprensa europeia discrimina os refugiados negros, pardos, indianos, árabes e africanos nas fronteiras da Ucrânia. A xenofobia e o racismo do ocidente ficaram evidentes não só nos discursos inflamados do espanhol Santiago Abascal (Presidente do partido Vox)[5], mas também na cobertura do correspondente da rede norte-americana CBS, Charlie D’Agata, ao afirmar ao vivo que os refugiados ucranianos não se confundem com os refugiados do Iraque e do Afeganistão, que não são civilizados nem europeus. Em outras palavras, não são loiros nem possuem olhos azuis, traços que são elevados pelo ideário nazista. Os refugiados com essas características são tratados de outra forma, ainda que sejam eslavos e, em muitas circunstâncias, também sujeitos à discriminação étnica dos europeus[6]. Portanto, onde ficam os colonizados, que não são ocidentais?
Não parece ser sensato que tomem outro partido a não ser o da paz, mas também não cabe que sejam ingênuos ao ponto de desconsiderar o quanto seria bom para as os países que já foram colônias europeias e hoje se subordinam ao jugo econômico e/ou político norte-americano, sejam latino-americanos ou africanos, um mundo multipolar capaz de lidar com as diferenças entre os povos e com o potencial de construção e desenvolvimento de relações mais equitativas entre as nações. Além da defesa da paz e da prosperidade entre as nações, é extremamente importante que estejam compromissados com a conquista de um mundo, que, pelo menos, possa contar com mecanismos capazes de conter os avanços megalomaníacos de países interessados em manter o domínio territorial, cultural, político ou econômico sobre todos os demais. A ideia de um mundo multipolar, ainda que uma utopia, é algo que parece mais portentoso para o futuro da humanidade e isso, certamente, requer uma nova ordem mundial e um novo sistema de equilíbrio do poder no cenário internacional, que possa garantir as condições mínimas para o exercício honesto e verdadeiro da diplomacia e o respeito ao direito internacional. Talvez com isso a ONU consiga sobreviver e cumprir o seu papel ideal. Não se trata neste momento de um equilíbrio de caráter ideológico, como talvez tenha sido aquele estabelecido pela Guerra Fria, mas de uma ordem em que se possa realmente sustentar o diálogo e a cooperação em questões de comércio, política e economia para além da lógica militar e dos interesses circunscritos às industrias bélicas norte-americanas.
Portanto, não é o caso de assumir de forma enlouquecida ou histérica, como tem sido o caso da mídia ocidental e de seus associados no que se refere aos EUA e seus aliados europeus, esse ou aquele partido, mas de buscar dentro do contexto geopolítico – observando-se inclusive os desdobramentos do projeto de destruição construtiva dos russos[7] -, posições e arranjos no cenário internacional, que possam favorecer o desenvolvimento sustentável dos países latino-americanos e africanos. Caso o mundo não termine em uma escalada nuclear e vingue realmente um bloco econômico forte com a aproximação da Rússia e da China (um bloco eurásico), englobando os países mais ao leste, é importante manter os canais abertos para o diálogo e os negócios dentro de uma nova ordem mais plural[8]. No caso brasileiro, é fundamental ampliar as relações econômicas e estratégicas do comércio com esses parceiros – inclusive reforçando o protagonismo do Mercosul -, bem como da atuação dos BRICS, que, embora não constitua um bloco econômico ou uma instituição com estatuto burocrático estabelecido na forma de uma instituição internacional, pode cumprir importante papel de acordo com seu propósito original, ou seja, de funcionar como uma alternativa ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional e como mecanismo de apoio ao desenvolvimento dos países emergentes. Em suma, para quem já foi ou ainda é colônia, a única postura defensável é se opor e lutar contra toda e qualquer forma de imperialismo e manter o compromisso sincero com a defesa da pluralidade e do respeito entre as nações.
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[1] Andrew Korybko. Guerras Híbridas: Das Revoluções Coloridas aos Golpes. 1ed. São Paulo. Expressão Popular, 2018.
[2] Conferir: https://www.conjur.com.br/2021-abr-10/jornal-frances-mostra-eua-usaram-moro-lava-jato.
[3] April Gordon. A New Eurasian Far Right Rising: Reflections on Ukraine, Georgia, and Armenia. Freedom House. Special Report, January 2020.
[4] Conferir: https://www.poder360.com.br/europa-em-guerra/quem-sao-os-neonazistas-ucranianos-que-putin-diz-combater/.
[6] Conferir: https://www.greenmebrasil.com/viver/costume-e-sociedade/64185-o-preconceito-racial-na-cobertura-da-midia-ocidental-na-ucrania-e-vergonhoso/ e https://revistaforum.com.br/global/2022/2/27/comentarista-da-al-jazeera-racista-refugiados-da-ucrnia-so-prosperos-veja-video-110756.html.
[7] Conferir: Sergey Karaganov: A Nova Política Externa da Rússia – A Doutrina Putin. RT, 23 de fevereiro de 2022.
[8] Nesse sentido, os recentes acordos entre China e Rússia reafirmam a aproximação em diversas áreas, com cooperação na diplomacia, no comércio exterior, reforço da Rota da Seda e defesa de um mundo policêntrico. Conferir: https://www.brasildefato.com.br/2022/02/04/china-e-russia-elevam-acordos-criticam-eua-e-pedem-que-otan-interrompa-expansao.
