
A Vaca foi pro Brejo
José Mendes de Oliveira
30 de novembro de 2024
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Há muitas expressões populares no Brasil que são significativamente imagéticas, ou seja, que nos remetem imediatamente à formação de uma imagem ou à visualização de uma determinada situação. Esse é o caso de a vaca foi pro brejo. Não precisa dizer mais nada para que se possa compreender que algo deu errado e que a situação se tornou muito desagradável. É exatamente isso que ocorre quando uma pobre vaca em busca do capim fresco se embrenha em terreno alagadiço e é tragada pela lama. O pobre animal cai em uma armadilha e frente à dificuldade de ser retirada do lamaçal corre o risco de morrer por atolamento. Morte certamente lenta, agoniante e dolorosa.
Na vida cotidiana, quando enfrentamos grandes frustrações e já não alimentamos qualquer tipo de esperança, costumamos admitir: a vaca foi pro brejo! Talvez essa seja a expressão mais apropriada para definir a decepção com a rendição do atual governo brasileiro ao status quo e a sua renitente persistência na defesa de uma política de austeridade fiscal, que ninguém pediu, mas achou conveniente levar a termo como um regalo para os banqueiros e rentistas da terra de Macunaíma. Nesse caso, torna-se apropriado um outro ditado: quem entrega os anéis nem sempre consegue garantir a integridade dos dedos! As vampirescas criaturas que povoam esse universo de altas taxas de juros e lucros desmedidas são insaciáveis.
O tal arcabouço fiscal inventado pela genialidade dos neoliberais do petismo convertido (sabe-se lá a quê!) teve um gosto amargo para quem alimentava grandes esperanças no início da gestão em 2023. Esse gosto se transformou em fel com o pacote de cortes, anunciado eufemisticamente como medidas para fortalecer o famigerado arcabouço, no dia 27/11/24, pelo titular do Ministério da Fazenda. A coisa tomou ares de importância e espetáculo ao ser televisionada em rede nacional, alternativa que deixou bastante evidente que o governo pode fazer uso desse instrumento de divulgação de forma seletiva, e sempre que considerar a pauta estratégica de acordo com seus interesses.
Mas por que o gosto se tornou mais amargo? Porque efetivamente a vaca foi pro brejo. Se alguém ainda tinha dúvidas sobre o caráter pouco progressista do atual governo, excetuando-se os torcedores fanáticos e contemporizadores, as dúvidas se esvaneceram frente a uma peça de austeridade fiscal insofismável, ainda que considerada muito tímida pelos tradicionais vampiros do sacralizado mercado (vampiros gostam de sangue, de muito sangue, desde que seja o de suas vítimas!). O que se assistiu com o pronunciamento do referido titular foi a asseveração de um compromisso inarredável com as regras fiscais do arcabouço, quando preveem que as despesas só podem crescer 70% da variação real das receitas, com limites de 0,6% a 2,5% ao ano.
A perspectiva é meramente a da tradicional e já conhecida política de corte de gastos. Afirma o próprio dirigente do Ministério da Fazenda que o objetivo é obter, com as medidas do pacote anunciadas, um impacto em torno de R$ 70 bilhões abrangendo os anos de 2025 (R$ 30 bilhões) e 2026 (R$ 40 bilhões). Essa história já conhecemos: austeridade fiscal é sinônimo de não investimento e, como favas contadas, pressão no andar de baixo e alívio para o andar de cima. Nada foi dito, por exemplo, sobre políticas estratégicas de desenvolvimento, projetos para reindustrialização do país, ações voltadas para o pleno emprego, reformas urbana e rural, contenção de renúncia fiscal para grupos privilegiados e políticas voltadas para a ampliação do bem-estar social.
O foco mais significativo foi direcionado ao salário mínimo e aos benefícios, destacando-se nesse caso o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que é concedido especificamente para idosos e pessoas com deficiência em situação de vulnerabilidade. No primeiro caso, colocou-se um cabresto na política de valorização real do salário mínimo, atrelando-o aos limites do arcabouço fiscal, que fixa o crescimento máximo em 2,5% acima da inflação. A medida é estabelecida mediante o argumento, essencialmente orçamentário, de que é necessário estabelecer equilíbrio entre a concessão de ganhos reais ao trabalhador e a sustentabilidade do orçamento público.
De acordo com a política atual de valorização do mínimo, o salário deve crescer anualmente com base na inflação acumulada no período anterior, mais a taxa de crescimento real do Produto Interno Bruto (PIB) do segundo ano anterior ao ano vigente. Em 2023, por exemplo, o PIB cresceu 2,9% e, portanto, o salário mínimo deveria ser reajustado em 2025 com esse mesmo percentual, acrescido com o valor acumulado da inflação em 2024. Com o atrelamento ao arcabouço fiscal, a correção fica engessada no intervalo de 0,6% a 2,5%, ou seja, um controle que pode ser entendido como perda do poder de consumo dos trabalhadores, inclusive em situações em que é possível ocorrer o crescimento do PIB e em que alguns segmentos da sociedade, que não dependem de salários, podem ser especialmente beneficiados (como o andar de cima).
Ademais, não é preciso ser economista para compreender que a valorização do salário mínimo é uma forma efetiva de distribuição de renda e, por tabela, de promoção do crescimento econômico. O círculo virtuoso é de fácil entendimento: o salário valorizado permite o aumento do consumo, o consumo gera receitas para o empresariado e as receitas possibilitam expandir ou abrir novas frentes de investimentos. No final das contas, o próprio governo se beneficia com o ciclo, melhorando o seu padrão de arrecadação. Restringir ou constranger essa possibilidade de valorização, sob o argumento de que grande parte das despesas primárias da União está indexada ao salário mínimo e precisam ser contidas, não parece ser o melhor ou o mais inteligente dos argumentos, a não ser para quem opta por uma perspectiva fiscalista das contas públicas.
No segundo caso, destacando-se o dilema do BPC, o que causa estranhamento é a utilização de um discurso policialesco, que estabelece a fragilidade do processo de concessão do benefício e a necessidade de conter a falta de critérios e a utilização de atestados médicos sem perícia. O argumento soa estranho porque aponta para ocorrências e ações de controle, que, em verdade, deveriam ser encaradas como corriqueiras em qualquer processo de concessão e não algo excepcional ou impactante, como se o BPC tivesse se tornado o antro da corrupção. Para salvar a concessão daqueles que já foram colocados sob a suspeita da malandragem, surge o poder mágico da biometria (uma moda tupiniquim) e, o que é certamente menos estranho e mais afeito aos objetivos fiscalistas, a inclusão de rendas de cônjuges e outros membros da família no cálculo de elegibilidade.
Para os mais desconfiados, eis a principal questão: o que acontecerá com os benefícios de um casal de idosos, que, atualmente, dependem do BPC para sobreviver? O que acontecerá com famílias onde se encontram mais de uma pessoa com deficiência? A resposta já tem sido explorada pela imprensa. Tudo indica que o governo pretende sujeitar a concessão ao cálculo da renda familiar, inclusive a ajuda obtida de parentes que não residem sob o mesmo teto. De acordo com essa lógica, a renda do solicitante do BPC será somada com a renda dos que residem com ele, ou daqueles que o auxiliam de alguma forma. O resultado do cálculo será dividido pelo número de pessoas e, se for maior que 25% do salário mínimo, o requerente do benefício perderá o direito ao BPC[1]. Eis o que esconde o cálculo da elegibilidade.
Além de direcionar a sua bazuca para o salário mínimo e para o BPC, o governo de plantão considerou por bem estabelecer outras medidas, algumas edulcoradas para facilitar a passagem pelas goelas e outras nem tanto. Em nome da população mais vulnerável, o governo resolveu alterar as regras do abono salarial, restringindo o direito do benefício para os trabalhadores que ganham até 1,5 salário mínimo em 2035. Atualmente, o abono é concedido aos trabalhadores que ganham até dois salários mínimos. Essa é mais uma medida de retirada de direitos e de contração da renda, que atinge diretamente o andar de baixo, e que não parece ser nem um pouco coerente com uma gestão que se autointitula progressista e comprometida com o crescimento do país.
As outras medidas arroladas no pacote dizem respeito ao controle da concessão do Bolsa Família, inclusão das emendas parlamentares dentro dos limites do arcabouço fiscal, acordo com as Forças Armadas para acabar com a morte ficta e ajustamento da regra de aposentadoria dos militares (3,5% da remuneração destinada ao Fundo de Saúde até 2026)[2], promessa de combate aos super salários no serviço público[3], alterações no Fundeb e na Lei Aldir Blanc, faseamento de provimentos e concursos públicos (meta de pelo menos R$ 1 bilhão de economia), mudanças no Fundo Constitucional do Distrito Federal (submissão da variação de recursos do fundo ao IPCA)[4] e a prorrogação da Desvinculação de Receitas da União (DRU) até 2032.
Como não poderia ficar de fora de um pacote de cortes, mediante o argumento da contenção de desequilíbrios, o governo também introduziu novos gatilhos fiscais para reenquadramento das despesas primárias. Dois se destacam: a proibição da criação de novos benefícios tributários caso o país registre déficit primário e o gatilho de reenquadramento em relação às despesas com pessoal. Nesse último caso, a partir de 2027, se as despesas discricionárias forem reduzidas em relação ao ano anterior, o aumento real das remunerações no setor público será limitado a 0,6%. Portanto, os servidores públicos na ativa e aposentados podem preparar o espírito e os bolsos, porque as pauladas virão sem lenitivos. Para quem vem amargando o breu das trevas, a escuridão poderá ser muito mais severa nos próximos anos.
Por fim, um pacote de cortes nunca se restringe à tragédia, é necessário que também contemple a comédia. Para adocicar as medidas antipopulares e visivelmente voltadas para os mais precarizados, os demiurgos do petismo convertido incluíram a intenção de realizar, de acordo com o discurso da autoridade do Ministério da Fazenda, a maior reforma do Imposto de Renda da história do Brasil (de onde tiraram isso, só os deuses, superiores aos demiurgos, devem saber!). O que compreenderia tamanha façanha: aumentar a faixa de isenção do IR para quem recebe até R$ 5 mil por mês em 2026 e taxar, sabe-se lá quando, as pessoas que tenham renda de R$ 600 mil ao ano em 10%. Ora, o que é muito evidente, o tiro da bazuca em direção ao salário mínimo e aos benefícios é imediato, mas o colorido adicional de uma pretensa taxação de ricos fica para as indefinições do futuro.
Todas essas manhas e artimanhas ainda deverão ser apreciadas pelo parlamento tupiniquim, onde se reúnem amigos de conveniência e inimigos cruentos do governo convertido ao neoliberalismo. A coisa será interessante, porque a direita e a extrema direita deverão encarar medidas que são do seu agrado e outras nem tanto. Vão aderir e abraçar as propostas dos demiurgos convertidos ou irão fazer birra e fincar pés como oposição? Isso ninguém sabe ao certo. Pode ser que, olhando para o futuro, e percebendo que a sala está sendo arranjada no estilo que apreciam, aprovem tudo com um sorriso sarcástico e a alma lavada. O que parecia ser socialista não é tão socialista assim, os que pareciam ser adversários não são tão adversários assim, e quanto mais puderem se libertar da autoria de maldades e sandices, mais fácil será justificar os perrengues no futuro. Há sempre a possibilidade de se dizer amanhã e na volta ao poder: a vaca foi pro brejo e a culpa foi da esquerda.
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[1]https://extra.globo.com/economia/noticia/2024/11/bpcloas-calculo-de-renda-para-concessao-vai-incluir-propriedade-de-bens-e-outro-beneficio-pago-na-mesma-familia.ghtml.
[2] A conferir a reação dos militares e as articulações com a bancada bolsonarista no Congresso.
[3] Eis uma promessa fadada ao insucesso, sobretudo porque grande parte dos super salários se concentra nos Poderes Legislativo e Judiciário, que possuem autonomia constitucional e não estão nem um pouco interessados em saber o que pensa ou deseja o Poder Executivo.
[4] Resta saber como reagirá o Governador e a bancada do DF no Congresso.
