
Um Povo Cafajeste
José Mendes de Oliveira
04 de outubro de 2022
O significado da palavra cafajeste não é tão ofensivo quanto parece. Ele em verdade traduz a condição de uma pessoa desfocada, ou seja, a situação de um sujeito que não se empresta importância e, portanto, é capaz de ser conduzido por e para qualquer situação, ainda que seja de natureza ou propósitos duvidosos. O adjetivo geralmente é aplicado para um indivíduo muito cínico, mas vale também para um povo. Eu sei que generalizações são burras e cruéis, mas, na mágoa que cultivo neste momento, concedo-me o direito de dar à maioria dos filhos de Macunaíma esse qualitativo. O povo brasileiro, em grande parte, confirmou o seu mau caratismo ou, se não for isso, a sua burrice. Refiro-me à votação estrondosa em figuras execráveis nessas últimas eleições e, justamente, em unidades da federação (em letras minúsculas porque o país é minúsculo) que se julgam muito desenvolvidas e, em um caso específico como o de São Paulo, que se posiciona como a locomotiva do Brasil (ainda que isso seja conversa para boi dormir!). Do meu ponto de vista, esse último pleito eleitoral retira alguns pontinhos das análises que buscam atribuir às elites brasileiras todos os males do atraso tupiniquim. Claro, elas têm muita culpa no cartório, mas também têm a cumplicidade de um povo que se assume, em muitos aspectos, verdadeiro cafajeste. A gentalha teve a audácia de eleger figuras como ex-ministros bolsonaristas que torceram pela morte de brasileiros e pela destruição da Amazônia, ex-ministros que trabalharam para destruir o pouco que ainda existia da ciência e tecnologia no Brasil e figuras inexpressivas, que além de seu fascismo, do forte espírito antidemocrático ou de seus pendores teocráticos nada fizeram por esse país de útil. Não adianta vir mais com está história de que a culpa é toda da elite do atraso, porque, ainda que ela participe do jogo, sozinha não conseguiria dar as cartas (afinal, qual é a elite que não é a do atraso no Brasil?). Parte considerável dos setores populares e medianos da sociedade brasileira, inclusive a que frequentou a universidade e pendura diplomas na parede, constitui o que há de mais atrasado na América Latina. Os sociólogos podem não gostar, mas terão que resgatar a literatura que esbugalha capciosamente os costumes, como a de Nelson Rodrigues, e muito de uma antropologia social com traços estruturalistas, como a de Roberto Da Matta, para se convencerem, de uma vez por todas, que o brasileiro é uma espécie rara: conservador, cafajeste e muito pouco solidário (com perdão pela generalização!). Lembro das palavras de uma personagem de Nelson Rodrigues: o homem só é solidário no câncer. Poder-se-ia dizer: o brasileiro só é solidário no câncer e olha lá! Ele chora na dramatização dos mortos da epidemia ou dos soterrados em Brumadinho, que a TV apresenta como melodrama novelesco, mas se esquece disso rapidamente. Foi só um capítulo. Depois de tudo, ele é capaz de condenar o país a um eterno martírio. As personagens de Nelson Rodrigues ajudam a entender um pouquinho da psicologia tupiniquim, assim como tem força explicativa a análise que Roberto Da Matta faz do “você sabe com quem está falando?”, quando destrincha as bases do sistema hierárquico brasileiro. Depois de tantas tristezas sofridas durante a pandemia da Covid 19 e depois de tantas maldades praticadas pelo atual governo à luz do dia, não resta mais espaço para ficarmos perplexos. A explicação é uma só: esse povo é masoquista, cruel, pouco solidário e reacionário ao extremo. Não é por menos que, nesses anos recentes, assistimos a tantas manifestações com suásticas, fogaréus, tentativas de destruição do STF, manifestações públicas de ódio e ações preconceituosas violentas. A mais recente e mais vergonhosa, além do racismo estrutural e o desejo de acabar com a fraca democracia tupiniquim, é a discriminação do povo nordestino por ter, de forma lúcida e inteligente, depositado seu voto em Lula, a única alternativa possível para salvar a democracia brasileira. Triste canalha enlouquecida pelas igrejas neoevangélicas e iludidas pelo mantra neoliberal de que são empreendedores, sujeitos livres e vocacionados a ser magnatas trabalhando como entregadores de fast food ou dando o próprio sangue a serviço de aplicativos. Duas cenas inusitadas: vi com meus próprios olhos, no calor infernal de Brasília, um entregador de fast food correndo como um louco pela calçada, curvado com o peso de uma caixa de lanches apoiada em suas próprias costas (não era um ciclista ou um motociclista), e também fiquei pensativo com o discurso de um motorista de Uber, que se gabava de ser dono de seu próprio automóvel, ser seu próprio chefe e ganhar seu próprio sustento. Trabalho em jornada infinita, conta a ser paga para o aplicativo e nenhum direito trabalhista garantido. Esse sujeito estava orgulhoso de ser o que me pareceu uma besta de carga ou um escravo que alguém fez acreditar que é um empreendedor ou um patrão (palavra mágica no ideário tupiniquim!). Esses brasileiros foram às urnas e, juntos com tantos outros, fizeram o que fizeram. Transformaram o parlamento brasileiro em uma arma para bombardear a própria democracia. O Brasil tem radicalizado as formas contemporâneas do golpe e da derrubada do sistema democrático. Frente ao que fizeram agora, se não houver qualquer tipo de reação, destruirão o Judiciário e, mediante a união do Executivo com o Legislativo dominado por asseclas no Senado e na Câmara, conseguirão implantar o sistema autocrático perseguido desde o primeiro momento pelos loucos bolsonaristas. No final dessa triste jornada, os pastores fascistas talvez celebrem um culto aberto na Praça dos Três Poderes, com o direito aos meneios frenéticos de uma primeira dama possuída, animada pela cantoria agonizante e desafinada de um certo senador do Espírito Santo ao ritmo das palmas de uma delirante que viu Cristo empoleirado em um pé de goiabas. Fim da festa e fim desse triste arremedo de nação. Então bye, bye Brazil.
