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Infância Roubada

José Mendes de Oliveira

19 de novembro de 2021

 

A experiência de entrar para o mercado de trabalho na infância, em função da necessidade de compor o orçamento familiar, é algo que só pode ser entendido em toda a sua intensidade e consequências por quem já passou por essa situação. Ir para a labuta em tenra idade não é fácil e, em muitos sentidos, tem o significado de uma violentação.  A experiência não é a mesma de um adolescente pequeno burguês que ocupa o seu período de férias para ganhar alguns trocados a ser gastos em um novo celular ou mesmo em férias programadas. O trabalho infantil não é um bico com propósitos hedonistas. As pessoas que não passaram pela experiência dificilmente terão a total compreensão da infância usurpada, do corpo cansado antes do tempo e das doenças maturadas para o tormento futuro. Não há lenitivo para a criança pobre e trabalhadora: a situação é degradante para aquelas que são impedidas de ir à escola para se dedicar exclusivamente ao trabalho e extremamente exaustiva para outras que precisam se desdobrar, cansadas e sonolentas, para dar conta do trabalho e dos estudos.

Em um país de raízes escravocratas como o Brasil, que possui uma estrutura configurada para o apartheid social, a presença de crianças no trabalho precoce não é exceção, mas regra. Elas estão não só nos semáforos vendendo saquinhos de pipoca, balas e doces. Estão no trabalho doméstico, nas ocupações urbanas e rurais, entre muitas que ameaçam os limites de suas capacidades físicas e emocionais, além do bem-estar e segurança. As cenas de crianças esfumaçadas e queimadas por brasas dos fornos das carvoarias, por exemplo, não é coisa do passado porque ainda é cena do Brasil atual[1]. Mas, além das imagens, há também os números que assustam. De acordo com os dados estimados da PNAD Contínua sobre o trabalho de crianças e adolescentes na faixa de 5 a 17 anos, até o ano de 2019, havia no Brasil 38,3 milhões de pessoas trabalhando, inclusive cerca de 2 milhões em atividades econômicas ou de autoconsumo[2].

A maioria das crianças e adolescentes na situação de trabalho infantil, até o referido ano, não cumpria carga inferior a 14 horas semanais. No grupo de 16 e 17 anos, de acordo com as estimativas do IBGE, 24,2% dos adolescentes cumpriam carga horária de 40 ou mais horas semanais. O mais grave: o contingente desses trabalhadores em ocupações informais era da ordem de 74,2% ou cerca de 772 mil pessoas[3]. A informalidade no mercado de trabalho brasileiro, como todos sabemos, envolve a falta de direitos e muita exploração. Os dados da PNAD permitem observar outro aspecto relevante, que condiz com o racismo estrutural no país. O trabalho infantil por aqui tem cor: 66,1% das crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil são pretas e pardas[4]. Em outras palavras, os afrodescendentes não têm muitas chances no capitalismo tupiniquim, situação que é imposta não só pela condição de classe, mas também pela herança histórica.

O círculo vicioso se completa na baixa escolaridade e no consequente impedimento de acesso às universidades. A criança trabalhadora pobre precisa se desdobrar, cumprindo a saga dos heróis, para poder superar os inúmeros obstáculos. Ainda assim, corre o risco de nadar contra a correnteza até o ensino superior, ou seja, até conquistar um diploma em áreas não muito concorridas da academia. Até 2020, segundo estudo do IPEA, nas faixas etárias correspondentes aos 20 anos, 36% dos jovens brancos encontravam-se na universidade estudando ou finalizando os seus cursos, ao passo que o percentual se restringia a 18% para o grupo de pretos e pardos[5]. Pressupõe-se, além do difícil acesso desse segmento ao ensino superior, o fato de que muitos jovens precisam conciliar os estudos com o trabalho, o que certamente dificulta a realização de cursos com a exigência de grande tempo de dedicação aos estudos. Embora não tenhamos esse dado, é possível que a maioria desses universitários tenha ingressado muito cedo no mercado de trabalho e, portanto, enfrenta as carências acumuladas desde a infância, além do desafio de se manter no espaço elitista da academia[6].

No país das desigualdades e do racismo estrutural, o pedigree social garante oportunidades e privilégios, ao passo que ser afrodescendente e pobre constitui um estigma que fecha portas e torna a mobilidade social um caminho pedregoso. Na esteira das transformações no mundo do trabalho, em que se constata um processo crescente de uberização e deterioração das ocupações, o Brasil parece prometer muito pouco para os seus jovens trabalhadores, além da extensão da exploração já existente. Para complicar a situação das crianças e adolescentes, os parlamentares da extrema direita tupiniquim, embalados pela onda neoliberal e pelo alvoroço bolsonarista, resgataram a PEC 18, apresentada em 2011 por um deputado e empresário pecuarista do Partido Progressista do Paraná, que propõe a formalização do menor trabalhador a partir dos 14 anos. Nessa idade, as leis brasileiras admitem apenas a condição do menor aprendiz, que deve se dedicar ao aprendizado em tempo parcial e sem prejuízo ao processo de escolarização.

O argumento apresentado na justificativa da PEC, agora apropriado e requentado, é o de assegurar aos menores os direitos trabalhistas e previdenciários[7]. No entanto, o que se esconde ou se camufla, é a face perversa da exploração do trabalho infantil. A situação do menor aprendiz pressupõe a garantia de sua qualificação profissional sem o comprometimento do seu desenvolvimento cognitivo, físico e emocional, o que não pode ser garantido na dinâmica de um mercado de trabalho cada vez mais precarizado. A emenda esconde, em verdade, o fato de que o menor estará progressivamente mais sujeito à informalidade e às oscilações do mercado de trabalho, ainda que o regime seja o de tempo parcial[8]. Algo dessa natureza não poderia ter saído de outra cabeça, ou seja, nada mais apropriado para os interesses de um empresário do agronegócio. Tudo indica que o futuro das crianças e adolescentes no Brasil será dantesco, caso as políticas neoliberais e a insensibilidade da extrema direita atualmente no poder não sejam combatidas e vencidas.

O país tem se distanciado cada vez mais do compromisso de erradicação do trabalho infantil estabelecido na Assembleia Geral da ONU em 2019 e, o mais terrível, tem destruído seus próprios fundamentos constitucionais. A PEC 18/2011 promove alterações que só alimentam o retrocesso e que vilipendiam abertamente os direitos dos adolescentes como previstos no art. 227 da Constituição Brasileira[9]. A propósito, a democracia brasileira tem se esfacelado nas mãos da extrema direita, na mesma proporção em que a abundância de propostas de emendas destrói o texto constitucional promulgado em 1988. No ritmo em que a coisa vai, em breve assistiremos não só ao final da promessa de estado de direito no país, mas presenciaremos a outorga de uma nova constituição, engenhosamente arranjada ou tricotada por parlamentares venais e inescrupulosos, e feita sob medida para os apatetados plutocratas, rurais e urbanos, dessa espezinhada colônia.  

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[1]https://reporterbrasil.org.br/2014/01/paulistano-usa-carvao-feito-com-trabalho-escravo-e-infantil/ (Acessado em 08/11/2021).

[2] Atividades de autoconsumo incluem cultivo, criação de animais, produção de carvão, fabricação de calçados e obras de construção, entre outras.

[3] A informalidade tem crescido no Brasil mediante o recrudescimento das políticas neoliberais. De acordo com dados da PNAD Contínua de agosto de 2021, no primeiro trimestre desse ano, o país atingiu a marca de 24,8 milhões de trabalhadores na informalidade, ou seja, cerca de 28,3% do total de pessoas ocupadas. No espaço de um ano, o aumento da informalidade foi da ordem de 14,7%, que correspondem a um acréscimo em torno de 3,2 milhões de pessoas. Conferir dados em:

https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9173-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-trimestral.html?t=resultados.

[4]IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2019 (ISBN 978-65-87201-40-5@IBGE,2020).

[5] Tatiana Dias Silva. Ação Afirmativa e População Negra na Educação Superior: Acesso e Perfil Discente. Texto para Discussão 2569. Brasília. Ipea, 2020.

[6] Ainda que a institucionalização do sistema de cotas a partir dos anos 2000 tenha melhorado o cenário com o aumento da participação de pretos e pardos no ensino superior (IBGE - Estudos e Pesquisas - Informação Demográfica e Socioeconômica nº 41), o problema da mobilidade dos afrodescendentes ainda não foi superado por tratar-se de uma questão estrutural da sociedade brasileira. Para cada criança preta e parda de famílias carentes há um longo e difícil caminho a percorrer até à universidade.

[7] Direitos que estão em processo de destruição pelo atual governo com o apoio dos parlamentares do centrão, ou seja, das bancadas que seguem os preceitos da direita e da extrema direita tupiniquim e legislam em causa própria.

[8] A PEC altera o inciso XXXIII do artigo 7º da Constituição, que passa a ter a seguinte proposta de redação: “proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz ou sob o regime de tempo parcial, a parir de quatorze anos”. Conferir em:

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=865344&filename=PEC+18/2011.

[9] Diz o texto constitucional: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. 

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