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Por uma Mudança Verdadeira

José Mendes de Oliveira

30 de dezembro de 2023

 

“O tipo de mudança que exigimos só pode vir de outro lugar, de um projeto que seja, no mínimo, antineoliberal, se não anticapitalista. Tal projeto pode se tornar uma força histórica somente quando ganhar corpo em um bloco contra-hegemônico”.

 

(Nancy Fraser – O Velho está Morrendo e o Novo não Pode Nascer)

 

A expressão si hay gobierno soy contra é atribuída tradicionalmente a algum gênio anarquista. Não sei quem a utilizou pela primeira vez. Não tive o tempo necessário (e também a força da vontade) para pesquisar e descobrir a sua origem, mas, de qualquer forma, a considero apropriada para traduzir o estado de espírito de quem já depositou muita confiança no poder mudancista dos governos, que se autointitulam progressistas, e agora, após décadas vividas entre promessas e expectativas, não consegue encontrar graça em quase nada que vem do universo político, ainda que ele possa ser um espaço frutífero para inspirar chargistas e comediantes (há mais motivos para o riso, além da raiva, que para o júbilo!). É bom esclarecer que não se trata da negação da política ou de sua relevância na vida dos seres humanos. Em verdade, o que ocorre é um profundo cansaço, em boa medida resultante da constatação de que o jogo do poder possui a implacável - a surpreendente e terrível -, capacidade de esterilizar ou de tornar infértil o mais nobre dos espíritos (mudar para permanecer o mesmo é sempre um soco no estômago!). Em outras palavras, esse jogo é, em muitos casos, tenebroso e tem a aparência de um buraco negro de onde nada pode escapar. Creio que seja dessa forma que percebo a dinâmica dessas manhas e artimanhas em terras brasileiras, o que certamente não exclui a possibilidade de que seja a mesma coisa mundo afora e em diferentes épocas.

A vitória da frente ampla nas últimas eleições presidenciais no Brasil talvez tenha sido mais um desses momentos de esperança, ainda que as barbas postas em molho há muito tempo, inclina o espírito a admitir que provavelmente a conquista não deva ser vista além do esforço em deter o tsunami da extrema direita. Por essa exclusiva e restrita expectativa, ainda que as ações sejam oscilantes, alimenta-se a forte esperança de que a barbárie, pelo menos por enquanto, encontra-se contida ou minimamente inibida. Certeza sobre isso não há, quando se percebe o cheiro da impunidade e da evidente exclusão nas ações judiciais das figuras mais proeminentes, que estiveram na base de apoio dos atos antidemocráticos. Sabemos que a justiça brasileira (assim mesmo: com a letra minúscula) é muito eficiente para perseguir ladrões de galinha (em geral pretos e pardos), mas extremamente leniente em se tratando dos contraventores de colarinho branco. Coisas de nosso histórico atraso institucional no que se refere à fragilidade do estado de direito e à adoção restrita dos princípios da cidadania. Não alimentei grandes esperanças no que se refere às pretensões da frente ampla, a não ser conter a barbárie bolsonarista, mas, hoje, tenho dúvidas se sequer isso possa ser efetivo e apresentar a mínima chance de ser bem-sucedido. O velho Brasil das alianças espúrias, dos acordos, dos perdões e conchavos, ou seja, dos grandes privilégios, permanece intocável como uma múmia engessada no tempo e no espaço. Em socorro às tramas e imbróglios vamos sempre encontrar o velho discurso da imprescindibilidade da governabilidade, ainda que a realidade aponte para o anacronismo e inocuidade do sistema de coalizações na atualidade e para uma evidente crise de hegemonia no capitalismo contemporâneo, que requer para o seu enfrentamento coragem e argúcia que os autoproclamados progressivas demonstram não ter ou não querer ter.

Não obstante o reconhecido e louvável esforço do atual governo brasileiro de resgatar o protagonismo do país no cenário internacional, as ações voltadas para dentro do país, que de acordo com muitos analistas ainda permanece polarizado entre os fieis seguidores do bolsonarismo e a geleia geral que garante os votos mais progressistas, não garantem sem a margem do medo que tenhamos afastado definitivamente do horizonte o ovo da serpente. Muitas promessas foram feitas para resgatar a dignidade da população e garantir um país mais justo do ponto de vista econômico e social, mas poucas são as evidências de que os sonhos possam concretizar-se ou constituir-se de fato uma realidade. O mais assustador é a política econômica contracionista e a adoção canhestra do que, usurpando com liberdade uma ideia de Nancy Fraser[1], poderíamos forçar a barra é denominar como um populismo progressista. Em outras palavras, o governo da frente ampla segue, ainda que os empolgados prosélitos do lulopetismo excomunguem a crítica, os passos traçados pelo contraditório e corrosivo neoliberalismo que passeia pelo país, pelo menos, desde o famigerado governo de Collor de Mello. Talvez a expressão mais próxima desse projeto econômico, que se torna mais agressivo após a crise de 2008, possa ser encontrado por aqui nas linhas e entrelinhas do conhecido texto Uma Ponte para o Futuro, publicado pela Fundação Ulysses Guimarães em outubro de 2015, não por menos na antessala dos preparativos para o golpe parlamentar de 2016. Prova de que as elites brasileiras não são bestas e que possuem uma capacidade incrível, como diria Florestan Fernandes, para a autocracia e consequentemente para os golpes[2].

Mas o que chama a atenção no referido manifesto dos conspiradores de gabinete é, além da já precoce atenção do parlamento voltada para a questão orçamentária (o filé que passa a alimentar a máquina eleitoral do Centrão e da extrema direita!), a antiga cantilena de que sem saneamentos nas contas públicas e controle fiscal, vale dizer sem a adoção de tetos de gastos, a economia fica impedida de crescer ao mesmo tempo que se instala uma crise econômica aguda[3]. A cantilena é um mantra neoliberal, que o atual governo abraça com fervor, ainda que pragueje e demonize quem tem a ousadia de denunciá-lo como tal. A obsessão do atual governo em equilibrar as contas públicas e estabelecer um déficit zero, algo talvez inédito na história do país, não afastou a sanha de um parlamento majoritariamente de direita e extrema direita em garantir suas verbas para as emendas e para o fundo eleitoral. O cobertor é curto e de algum lugar os recursos para agradar os representantes das elites brasileiras, particularmente no que se refere aos seus projetos eleitorais (2024 é um ano eleitoral para vereadores e prefeitos!), deverá ser deslocado de investimentos para o aquecimento da economia e para as políticas sociais. Poderia ser uma contradição se o jogo fosse o da traição e da ação cafajeste de oportunistas, mas não é, porque é assustadoramente assim que as coisas sempre aconteceram e acontecem. Os andares de cima da sociedade jamais perdem, mas os andares de baixo pagam a conta ou assumem as perdas socializadas. Não importa qual seja o governo, a história se repente de forma cruel e injusta, desde o complicado nascedouro deste país. Depois das urnas abertas, os eleitores deixam de ser importantes, e entra em cena a política dos corredores palacianos, dos gabinetes parlamentares e das tribunas do judiciário. Isso é cada vez mais verdadeiro para um sistema político ensimesmado, para partidos cartelizados[4] e para um sistema econômico destrutivo e cada vez mais concentrador da riqueza.

O governo da frente, que se autointitula progressista, em verdade, não pode em hipótese algum ser configurado um governo de esquerda. É um amálgama de tendências e interesses, que se assemelha ainda mais a uma feijoada quando abraça as conveniências do famoso e poderoso Centrão, um bloco parlamentar onde convivem arautos da extrema direita e os oportunistas mais velhacos desta lamentável república. A coisa deve ser assim de acordo com os pragmáticos que hoje dominam a cena política. De acordo com eles, parece que não existe mais espaço para o sonho ou para a utopia, ainda que a extrema direita possa fazer uso desses ingredientes em seu discurso, mesmo que seja para encantar incautos e manter viva a chama. Falta também a coragem e a jovialidade pujante para a crítica e para o embate ideológico, que perdem lugar para o discurso cristão da paz, da união e do amor em uma sociedade que já não pode mais negar as diferenças, os antagonismos e o evidente conflito. O pragmatismo em verdade é feio e chato, além de exalar o odor das naftalinas, particularmente quando não consegue ir além da retórica e fugir de sua impotência para produzir resultados efetivos. Pragmatismo sem resultados é certamente sinônimo de burrice ou do faz de conta que faço o que não faço, ou seja, empulhação.

É uma pena constatar que o atual governo optou por andar no fio da navalha. Por quê? Se sua política contracionista se mostrar o que realmente é em termos de seus efeitos, um terrível veneno, as consequências podem ser horríveis para os brasileiros que sempre sonharam com um país democrático e justo. O espaço estará aberto para o retorno da extrema direita e de seu neoliberalismo reacionário, talvez agora em uma versão hiper-reacionária no estilo pretendido pelo argentino Javier Milei. Nesse caso, não haverá espaço sequer para um débil neoliberalismo progressista, em que a garantia dos privilégios dos ricos é adoçada com a aceitação do identitarismo e com a distribuição de algumas migalhas para os andares inferiores da sociedade[5]. Para complicar um pouquinho mais, o populismo progressista do governo, baseado no favorecimento dos ricos e rentistas de um lado (reforma tributária e arcabouço fiscal que não atinge dividendos e lucros), e de algumas políticas sociais do outro (Minha Casa Minha Vida e Bolsa Família), deixa espremidos no meio os segmentos medianos, que não se beneficiaram muito de políticas sociais em governos anteriores e, tudo indica, serão mantidos no limbo no atual governo. Entre eles, a maioria dos servidores públicos federais, incluindo aposentados e pensionistas, que terão seus rendimentos congelados no ano de 2024, frente a uma defasagem salarial que varia entre 39,92% e 53% em relação à inflação acumulada nos últimos dez anos[6]. O mais interessante é que o discurso da precariedade dos recursos vale para alguns, mas não vale para outros: enquanto a maior parte dos servidores, principalmente os de atuação em áreas administrativas, terá seus rendimentos congelados, o governo negocia aumentos expressivos para segmentos como carreiras da Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal, categorias que certamente, além do poder de organização e pressão, são inquestionavelmente agentes do braço repressivo do Estado (entre eles muitos adeptos do bolsonarismo!)[7].

 

É interessante notar, nesse caso específico dos servidores federais, que parece ser tradição dos autointitulados governos progressistas beneficiarem os grupos de elite dentro das burocracias do Estado, como se pudessem conquistar a fidelidade desses segmentos com as benesses salariais, a maioria convertida em subsídios (algo muito diferente dos vários penduricalhos que constituem a remuneração da maior parte dos servidores[8]). De acordo com dados do Ipea, no período de 1999 a 2020, a remuneração líquida mensal média dos servidores do Poder Executivo federal não ultrapassou R$ 7.400,00 e, em 2020, cerca de 50% receberam até R$ 5.922,00, ou seja, remunerações muito distantes do que ganham algumas categorias do Ciclo de Gestão do Governo Federal e dos Poderes Legislativo e Judiciário[9]. A tendência em beneficiar o andar de cima, que geralmente envolve muitos burocratas de colarinho branco, está longe de garantir efetividade e lealdade. Basta verificar com um pouquinho de acuidade, entre esses segmentos da burocracia, que grupos efetivamente aderiram ao bolsonarismo, mas o elitismo dos progressistas parece ser crônico, além, talvez, da convicção de que se deve manter quietos e felizes quem detém a força ou informações privilegiadas dentro do Estado. Em outras palavras, o Estado reproduz em seu interior a estratificação da sociedade e, infelizmente, quem detém o poder utiliza a mesma lógica para tratar das questões econômicas e sociais que atingem os vários segmentos e grupos de interesse. Não é por menos que o atual governo lança mão do populismo progressista para apaziguar a insatisfação dos servidores frente ao congelamento de seus rendimentos: propõe-se aumentar auxílio refeição, auxilio creche e auxílio saúde, mesmo sabendo que isso não atende todos os servidores e, cruelmente, exclui pensionistas e aposentados que se encontram constrangidos pelos preços de planos de saúde escorchantes e na dependência de empréstimos consignados.

O mais grave, porém, é o atual governo encarar a impossibilidade de investimentos em ações para os andares de baixo da sociedade, ou seja, devido à sua política fiscal restritiva não conseguir recursos sequer para manter os programas assistencialistas a partir de 2024. Nesse caso, o caldo entorna, principalmente para a vertente petista da frente ampla, porque contrariará não só os setores medianos da sociedade, a exemplo dos servidores públicos, dos quais há muito tempo não tem a simpatia, mas também, e sobretudo, dos pobres e do lumpesinato. Nesse momento, certamente, o Centrão e a extrema direita estarão prontos para agir e pedir não só o fígado ou a cabeça, mas o corpo inteiro dos governantes da frente ampla. A possibilidade de um impedimento do presidente não é uma ilação, ideia de jerico ou sandice de conspiradores de botequim, é uma possibilidade concreta, particularmente com um parlamento que se mantém fiel ao bolsonarismo até a última gota de sangue. No que diz respeito às elites, não há problemas, porque elas convivem com quaisquer comensais desde que garantam a mesa posta e sempre farta. Em relação ao restante da população, não haverá mobilização, tendo em vista sobretudo que a opção do atual governo não é a política feita nas ruas, com movimentos sociais e com incentivo à participação de massas populares, mas o xadrez jogado nos cassinos da política feudalizada e comercializada entre quatro paredes. Além disso, no final das contas, nem só de pão vivem os homens, como querem acreditar os pragmáticos, mas também de crenças, sonhos e utopias, bem como de esperanças, que podem ser vendidas pelos mais execráveis dos vendilhões (eis aí os pastores com a teologia da prosperidade!). Assim sendo, não tem por que se assustar, quando o povão endoidecido e os odiados setores medianos se camuflarem cada vez mais em bandeiras e camisas esportivas verde-amarelo, e em um rompante de loucura total, tomados pelo cólera, correrem em busca de um Milei em sua versão tupiniquim. Que os deuses nos livrem disso, porque talvez essa frente ampla, perdida em suas contradições, cegueiras e euforias, não seja capaz de fazê-lo.  

 

Observação: Gratidão a Nancy Fraser, que só conheço por intermédio das leituras, mas que, em seu pequeno livrinho, me abriu uma ampla e magnifica estrada para a compreensão da crise do neoliberalismo reacionário e da necessidade de um populismo progressista engajado e corajoso, capaz de enfrentar a crise de hegemonia da atualidade e constituir um bloco contra-hegemônico comprometido, como ela mesma diz, com uma política fortemente igualitária de distribuição e uma política de reconhecimento substancialmente inclusiva. Penso que esteja faltando muito isso neste Brasil carcomido pela ignorância e pelo oportunismo.

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[1] Nancy Fraser. O Velho está Morrendo e o Novo não Pode Nascer. São Paulo. Autonomia Literária, 2021.

[2] Florestan Fernandes. A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica. 6ed. São Paulo. Editora Contracorrente, 2020 (Capítulo 7: O Modelo Autocrático Burguês de Transformação Capitalista).

[3] Conferir A Questão Fiscal e Retorno a um Orçamento Verdadeiro in Uma Ponte para o Futuro. Brasília. Fundação Ulysses Guimarães. Outubro de 2015, p. 5-11.

[4] Conferir Richard S. Katz and Peter Mair. Changing of Party Organization and Party Democracy. Party Politics. Vol.1. No. 1 - pp. 5-28.

[5] Conferir os conceitos de neoliberalismo reacionário e progressista na obra citada de Nancy Fraser.

[6] Conferir: Servidores Federais Realizam Manifestação por Reajuste Salarial Nesta Quarta in Brasil de Fato – 20 Anos, 07/11/203 (https://www.brasildefato.com.br/2023/11/07/servidores-federais-realizam-manifestacao-por-reajuste-salarial-nesta-quarta-8#:~:text=Uma%20parcela%20do%20funcionalismo%20p%C3%BAblico,defasagem%20de%2039%2C92%25).

[7] Governo Define Reajuste para PF e PRF e Salários Chegam a R$ 41 mil in Estadão, 30/12/2023 (https://www.estadao.com.br/politica/governo-servidores-acordo-reajuste-salarial-carreiras-policia-federal-pf-prf-rodoviaria-nprp/#:~:text=O%20governo%20federal%20assinou%20o,2025%20e%20maio%20de%202026.

[8] Talvez muitos brasileiros não façam ideia, mas o vencimento básico da maioria dos servidores públicos federais, excluída a elite do Ciclo de Gestão que recebe o famigerado subsídio, é extremamente baixo. A maior parte da remuneração final é composta por gratificações, que, geralmente, não integram os recursos recebidos na aposentadoria. Aproximadamente: Nível Superior (Classe Especial) = R$ 4.113,38, Nível Intermediário (Classe Especial) = R$ 2.338,30) e Nível Auxiliar (Classe Especial) = R$ 1.409.90. (Conferir: Anexo IV-A à Lei nº 11.233, de 22 de dezembro de 2005).

[9] Felix Lopes & José Teles. Nota Técnica: Remunerações dos Servidores Civis Ativos do Executivo Federal (1999-2020) – Conferir: https://www.ipea.gov.br/atlasestado/download/239/distribuicao-de-remuneracao-nos-niveis-federativos-1985-2019-faixas-de-remuneracao#:~:text=Em%202020%2C%2050%25%20dos%20servidores,com%20rela%C3%A7%C3%A3o%20ao%20ano%202000.

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