
A Conservadora Geração Globinho
José Mendes de Oliveira
23 de abril de 2022
A pesquisa realizada pela Exame/Ideia sobre a percepção da Geração Z brasileira sobre diversos temas da atualidade, abrangendo da economia ao meio ambiente, é um trabalho de leitura imprescindível[1]. A Geração Z é compreendida, geralmente, como aquela que reúne pessoas nascidas entre a década de 90 até meados dos anos 2010, quando começa a se configurar a Geração Alfa. Para a maioria dos especialistas que adotam essa tipologia ou categorização, a Geração Z pode ser caracterizada como aquela familiarizada com o mundo digital, com a internet, com os videogames e com as inovações tecnológicas do referido período histórico. A pesquisa abrangeu uma população de 1000 pessoas na faixa etária entre 16 e 24 anos. Os resultados apresentam aspectos muito positivos, a exemplo da pretensão de 89% em obter o título de eleitor visando participação no próximo pleito eleitoral e de se preocupar com os impactos da crise ambiental, mas também tendências no mínimo preocupantes.
O primeiro aspecto que pode ser considerado surpreendente é o fato de 40% declararem não possuir quaisquer afinidades ideológicas e que optam pelo voto em pessoas. De certa forma isso pode revelar duas possiblidades: o voto identitário ou o pragmatismo direcionado a interesses mais individualistas. Ademais, 27% se declaram de esquerda e 22% de direita, mas, entre os que votaram em 2018, 51% optaram pelo candidato da extrema direita. Esses dados somados com a expressão do que seria o problema mais grave no país, apontada pela maioria como sendo a corrupção (27%), evidencia que uma parcela significativa da juventude brasileira tem se curvado às tendências conservadoras. Embora declarem não nutrir simpatia por nenhuma ideologia, nada a impede de se alinhar, tendo em vista essas tendências, com posições mais à direita do espectro político. No ranque das prioridades, ainda que a educação venha em segundo lugar como ponto de vista de um segmento que ainda se encontra na escola (20%), temas relevantes para a democracia brasileira são considerados de forma inexpressiva: fome e miséria (11%), desemprego (7%), saúde (6%), desigualdade social (0,2%) e política (0,1%).
Há uma aparente contradição quando os entrevistados são perguntados sobre o que deveria ser essencial nos programas dos candidatos: 43% consideram essencial a inclusão da questão da desigualdade social em contraposição aos 41% que insistem no tema da corrupção. Parece ocorrer um empate, mas a análise de outros dados, fornecidos pela pesquisa, evidenciam uma outra realidade, bem mais conservadora. A pesquisa revela também a dicotomia entre a pauta dos costumes e a questão econômica e, nesse sentido, a percepção dos entrevistados pode ser vista como um reflexo das próprias tendências atuais no cenário político brasileiro. O problema é que a pauta dos costumes – com destaque para a visão moralista da corrupção -, conduz facilmente à demonização da política proposta pelo populismo de direita. A veia conservadora é ainda mais destacada quando se observa que 48% dos jovens são contra a descriminalização do aborto e 48% é muito ou parcialmente ativo em comunidades religiosas. Embora a pesquisa não evidencie o fato, isso condiz claramente com o avanço do fundamentalismo neopentecostal e do catolicismo conservador no país.
Em verdade, o que se destaca é o perfil de uma juventude pouco politizada e pouco sensível às questões políticas, econômicas e sociais que afetam o país. A geração da internet e do videogame parece ser, além de pragmática, muito individualista. Essas características podem ser muito negativas quando se observa o que é efetivamente requerido para o exercício da cidadania. O individualismo somado ao hedonismo, assim como a ojeriza à política, pode ser obviamente sinônimo de descrédito em relação ao estado de direito e de descrença nas instituições democráticas. Esses são aspectos fundamentais para resgatar o país do buraco aberto pelo bolsonarismo. Como contornar essa situação com uma juventude desinteressada? Com desapego ao saudosismo, é impossível não ficar impressionado com a falta de organizações ativas como os antigos DCEs, CAs, a UNE e os movimentos comunitários de base, além do próprio sindicalismo, que foram extremamente importantes como canais de contestação durante os períodos mais duros da ditadura brasileira. Temos hoje um paradoxo: os meios de expressão são muitos no universo da internet e das mídias, que não existiam há 50 anos, mas isso não é utilizado de forma construtiva e se reduz essencialmente às práticas do narcisismo ou da violência simbólica praticada pelos grupos de extrema direita.
Além da questão política, é relevante considerar também o impacto da postura dessa geração no mercado de trabalho. A pesquisa não explora em profundidade essa questão, mas os dados obtidos apontam que 33% gostariam de ser empresários, 29% ter um emprego formal, 29% realizar concurso público e 8% ter um emprego informal sem carteira assinada e com horários flexíveis. A preocupação com a segurança econômica é percebida, mas é possível inferir que o perfil dessa geração responde não só aos valores da meritocracia neoliberal, mas, de certa forma, também se adequa ao processo de precarização do trabalho. Essa inferição é fortalecida se consideramos a aversão às formas de organização e mobilização social. Por exemplo, a organização trabalhista requer, sobretudo a manifestação sindical, algum grau de politização e compromisso institucional. Não obstante as causas mais profundas do processo de precarização do trabalho, é impossível não perceber o mal provocado pela atomização das condutas e dos interesses.
O desejo de ser senhor de si mesmo é um valor reforçado pela cultura neoliberal, que destaca o empreendedorismo e a meritocracia em detrimento dos vínculos e da solidariedade social, que são cruciais para qualquer ação coletiva de mudança do status quo. É obvio que a pesquisa não pode ser utilizada como elemento redutor da complexidade que envolve os diversos segmentos sociais. A tal Geração Z não é obviamente compacta e homogênea, particularmente em se tratando de uma ordem social estratificada como a brasileira. No entanto, os dados são ilustrativos como reveladores de tendências, que deveriam preocupar partidos e dirigentes políticos, particularmente aquelas agremiações que se intitulam progressistas. A aversão à política que se espraia nessa geração compreende a perda do sentido do politikos, ou seja, da percepção do sujeito coletivo e do sentimento de pertencimento a um espaço destinado ao exercício da cidadania. É, de certa forma, um processo que também contribui para a desagregação do caráter e para a perda de valores e do sentido existencial.
Essa geração é uma extensão do que prefiro definir como Geração Globinho, que acalentada pela TV transformada em babá, absorveu inicialmente os valores de uma cultura hedonista e alienante, e posteriormente uma ótica enviesada da realidade vista na internet e nos games. Esse hedonismo foi alimentado pela negação da memória e pela transformação do presente em um mundo colorido e alegre: o mundo do mercado e do merchandising televisivo para o qual só existe o presente ou o carpe diem. Nesse sentido, vale a pena lembrar os versos do jingle do programa Globo Cor Especial, destinado a entreter as crianças brasileiras entre os anos de 1973 e 1983, que asseverava a sua aversão ao passado com o seguinte refrão: “vocês já eram, o nosso papo é alegria! ”[2]. O problema é que a vida não é só alegria e nem tudo é tão novo e colorido. Ela é também lembranças, desejos, frustrações e, em certo sentido, tragédia. Esse é um aspecto que, provavelmente, os já não apreciados e antigos contos de fadas abordavam de forma mais competente, se comparados aos jogos competitivos e às animações açucaradas dos estúdios Disney, que ordenam o imaginário das crianças dos estratos medianos.
O fato é que essa geração se encaminha para as urnas e seus votos podem ser algo imprevisível, particularmente neste momento de crise do sistema capitalista e de avanço do ideário de extrema direita em várias partes do mundo. O momento é propício ao pensamento raso, aos preconceitos, à xenofobia e às posturas autoritárias. Esse é outro paradoxo: em um momento que tanto se fala em direitos identitários, observa-se o reforço de posturas conservadoras e preconceituosas, inclusive entre minorias que buscam o reconhecimento social e um espaço de expressão social[3]. É um mundo confuso e multifacetado, mas pouco reflexivo, imediatista, pragmático e suscetível à sedução de falsos discursos antissistema, a exemplo do que é usualmente produzido pelos movimentos de extrema direita. Não se pode deixar de observar como preocupante a opção de 51% dos jovens entrevistados pelo bolsonarismo em 2018 e o quanto contribuíram como apoiadores para a disseminação do ódio e dos sentimentos antidemocráticos veiculados nas redes sociais.
É assustador pensar que os futuros dirigentes brasileiros – administradores públicos, políticos, juristas e eventualmente o presidente da república – virá naturalmente dessa geração. Os desafios do país, que precisa urgentemente retomar os rumos de um projeto civilizatório e de desenvolvimento sustentável, dificilmente poderão ser adequadamente enfrentados nas mãos de pessoas avessas à reflexão e ao pensamento científico, a uma compreensão mais elaborada do mundo, da vida e da natureza e, principalmente, sem compromisso e solidariedade com seu próprio povo, com a cultura e história do seu país. Além da preocupação do voto desse pessoal em relação ao próximo presidente da república – que pode eventualmente dirigir-se novamente para o bolsonarismo -, deve-se estar atento à qualidade dos congressistas que serão eleitos em 2022. Deve-se considerar que parte desse Geração Z ajudou a eleger os representantes do atual Congresso brasileiro, talvez o pior de toda a história parlamentar do país. O momento agora é de medo, mas ao mesmo tempo de torcida, para que não se repita o erro autodestrutivo de 2018. Caso ocorra o desastre, aí será realmente o fim da história para este triste país e da forma mais tenebrosa, ou seja, sob o domínio da irreversível e vitoriosa barbárie.
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[1] https://exame.com/brasil/jovens-eleicao-pesquisa/ (Consulta em 19/04/2022).
[2] O jingle foi construído por Nelson Motta e a versão integral é a seguinte: “Não existe nada mais antigo /Do que cowboy que dá cem tiros de uma vez /A avó da gente deve ter saudades/ Do zing-pow! Do cinto de inutilidades/ No nosso mundo tudo é novo e colorido/ Não tem lugar pra essa gente que já era/ Morcego velho, bang-bang de mentira/ Vocês já eram, o nosso papo é alegria! ”.
[3] Essa aparente maluquice do mundo atual permite observar um dirigente negro racista no Brasil, um judeu associado a grupos nazistas na Ucrânia, dirigentes negros nos EUA que trabalham para alimentar uma máquina de guerra imperialista, e mulheres que ocupam espaços de poder e agem com o mesmo autoritarismo falocêntrico que supostamente criticam e abominam (particularmente nos países da União Europeia). É tudo muito contraditório e tudo muito confuso, porque os valores que predominam são aqueles baseados no narcisismo, no sucesso individualista e na incoerência devido à falta de compromissos com causas que transcendem os interesses egoísticos e mesquinhos do alpinismo social.
