
Falta Utopia e sobra Desilusão
José Mendes de Oliveira
06 de junho de 2025
Nos dias atuais em que se vive uma onda avassaladora de obscurantismo e desilusão, particularmente para quem vive em um país periférico e dependente como o Brasil, pouco resta de alternativas para alguma forma satisfatória de sublimação. Para muita gente, que alimentou em algum momento o ideal de um mundo mais justo e igualitário – principalmente para quem se engajou na busca pela concretização desse sonho -, a sensação da derrota e de que a pulsão de morte saiu vitoriosa parece ser imensa e sufocante. O pavor e o imobilismo gerado pela perda da esperança não advêm somente da crueldade, da incivilidade e de todas as outras formas bizarras de ingerência do anti-humanismo traduzido em genocídios, no mercado das guerras e na violência simbólica canalizada nas mídias sociais. Não se trata apenas de um estado anômico derivado de uma crise moral ou do espraiamento da estupidez decorrente da renúncia à reflexão construtiva. Na base desse espetáculo dos horrores encontram-se as contorções de um sistema econômico em crise e sua recorrência ao acirramento dos fundamentos do neoliberalismo como opção de sobrevida, que deve ser percebida, além da circunscrição da esfera econômica, como a expressão mais aterradora da colonização esterilizante do mundo da vida pela lógica instrumental do mercado divinizado.
No caso brasileiro, a decepção parece ser muito mais significativa, quando se observa que a falta de alternativas atingiu também a esfera política, particularmente com a ascensão da extrema direita e o processo de conversão das autoproclamadas esquerdas progressistas, que abandonaram pautas históricas e o espírito revolucionário para abraçar a tese da inexorabilidade do capitalismo. A política como a arte das possibilidades desapareceu do cenário político em muitos lugares e inclusive em solo brasileiro. Nesse último caso, o conceito da correlação de forças, entrelaçado com a tradicional prática da conciliação, passou a ser o argumento recorrente para encobrir a covardia e a rendição a projetos de poder imediatistas e reacionários. O capitalismo pode estar em crise e se embrenha em um jogo arriscado na maior parte do mundo, particularmente quando lança mão de soluções bélicas, mas as elites brasileiras continuam vencendo a guerra em seu próprio território sem necessariamente lançar mão de forças repressivas, que historicamente dão sustentação à sua vocação autocrática. Elas são capazes de fagocitar e instrumentalizar as mais diferentes correntes políticas, particularmente quando parte dessas correntes se encontra em profunda crise ideológica e submetida à sedução do mercado.
Nesse sentido, pode-se admitir que o bolsonarismo e o lulopetismo cumprem papel semelhante na manutenção da ordem, ainda que façam uso de discursos aparentemente antagônicos. O primeiro se compromete com a manutenção do status quo sob o disfarce de uma agenda moralista, que agrada principalmente setores medianos da sociedade, e com a falsa narrativa da orientação antissistema, que arrebanha os desesperançados e os deprimidos de uma sociedade hierarquizada e excludente. O segundo gerencia, no espaço institucional e sem resistência, os interesses econômicos dessas elites – destacando-se hodiernamente as burguesias financeira e agroexportadora -, mascarando suas ações na esfera governamental com a credibilidade amealhada no passado e com o discurso de uma esquerda que não existe mais. O resultado desse gerenciamento é altamente corrosivo e acelera o sentimento da desesperança, porque gera desmobilização e despolitização, além da contração dos movimentos sociais e da organização sindical, destacando-se nesse último caso aqueles segmentos que se inibem em função de um suposto compromisso ou fidelidade em relação ao lulopetismo. Esse tipo de alinhamento resulta no descrédito dos movimentos sindicais e no consequente desengajamento dos trabalhadores.
A situação é realmente propícia ao sentimento de angústia e à percepção de um futuro inóspito ou mesmo da impossibilidade de um futuro. O capitalismo em sua versão neoliberal tem fortalecido a tendência à necropolítica, à defesa das oligarquias e das plutocracias em detrimento das utopias mais humanistas. A resposta para essa tendência tem sido, além das opções alienantes, a adesão a soluções neofascistas que pioram ainda mais a situação de exclusão, de injustiça social, de individualismo e de isolamento dos indivíduos. O desequilibro não é só físico frente às carências materiais e à inacessibilidade a recursos básicos – alimentação, moradia, saúde, educação, entre outros -, mas também psicológico. A falsa ideia de que todos podem ser transformados em empreendedores – sejam fazedores de brigadeiros, escravizados de aplicativos ou influenciadores nos meios digitais – retroalimenta o intencional propósito da consolidação de uma ordem regida pelo darwinismo social. Nesse mundo pouco afeito à reflexão, plasmático e sem a promessa de algum futuro, só resta a desilusão e a indiferença. Dessa forma, torna-se fácil a naturalização da violência, das práticas genocidas, bem como a aceitação da perversidade em substituição à solidariedade.
O cenário tenebroso não se restringe, obviamente, à sociedade brasileira. A crise do sistema abarca direta ou indiretamente, em maior ou menor grau, todos os países integrados ao capitalismo mundial, mas as respostas ou reações não são necessariamente as mesmas, sequer dentro da América Latina. Pode-se então admitir que o que ocorre no Brasil apresenta suas particularidades e nuanças. Entre elas, a conversão definitiva do lulopetismo ao neoliberalismo e todas as suas consequências políticas ficarão, certamente, como um marco na história. Para quem ainda tem um pouquinho de ânimo para tentar entender reflexivamente as loucuras da contemporaneidade, vale a pena considerar duas obras de fundamental importância: O Realismo Capitalista de autoria de Mark Fisher[1] e A Ordem do Capital de autoria de Clara Mattei[2]. O primeiro é elucidativo sobre o fenômeno do Novo Trabalhismo na Inglaterra de Tony Blair, entre 1997 e 2010, fruto da adesão do Partido Trabalhista britânico a uma agenda populista e conservadora voltada ao endosso da economia de mercado, o que motivou Margareth Thatcher a dizer que sua maior conquista teria sido a mudança das mentes ou das ideias de seus opositores[3]. Para Mark Fisher, o Novo Trabalhismo foi a expressão do realismo capitalista como patologia da esquerda[4], e também expressão da decomposição ou desintegração da consciência de classe[5].
Do nosso ponto de vista, o conceito adotado por Fisher é extremamente útil para compreender as guinadas do lulopetismo e de seus associados progressistas no exercício do poder. Assim como ocorreu com a terceira via do Novo Trabalhismo, a conversão ao neoliberalismo tem servido adequadamente à atrofia da conquista do poder sem hegemonia, que é uma outra forma de dizer sobre a submissão aos interesses das classes dominantes, ou seja, governar em função do capital. O segundo livro é uma extraordinária abordagem econômica sobre as políticas de austeridade no início do século XX, em países europeus, e seus impactos sobre a ascensão do fascismo a partir de 1919. A obra é densa e difícil de ser resumida, mas o que nos interessa é precisamente a abordagem sobre a utilização instrumental das políticas de austeridade para manter as relações sociais capitalistas de produção e conter a articulação política daqueles que dependem exclusivamente do trabalho para a sobrevivência[6]. O arcabouço fiscal defendido pela Frente Ampla, capitaneada pelo lulopetismo, é essencialmente uma política de austeridade e contracionismo que garante às elites brasileiras, principalmente aquelas que atuam no mercado financeiro e no agronegócio, a manutenção dos seus interesses, ainda que possa resultar em mais concentração de renda, na precarização das relações de trabalho e no consequente empobrecimento da população assalariada.
Em suma, o pragmatismo do lulopetismo preso às amarras institucionais, ao projeto de poder dissociado da inspiração utópica, às políticas econômicas traçadas de forma tecnocrática e ao distanciamento dos movimentos populares, fertiliza o solo para o florescimento das distopias, ao mesmo tempo que cumpre o questionável papel de mantenedor da ordem ou de instrumento da reprodução social de acordo com os interesses das elites econômicas. Em outras palavras, o lulopetismo no momento atual fortalece a impressão ou a imagem de quem traiu a causa, de quem já assumiu o discurso antissistema no passado, mas que hoje capitulou sem pudor ou arrependimento. Porém, isso tem pouca importância para as elites, que nunca se intimidaram e não se intimidam quando se trata da luta de classes. O lulopetismo e demais correntes progressistas podem ter abandonado esse conceito, mas as elites certamente nunca o fizeram, e na guerra que travam no decorrer da história não poupam esforços e não são pudicas quando é necessário seduzir, corromper, cooptar, conspirar, violentar ou romper com a ordem constitucional. Portanto, no cerco da polaridade brasileira, entre lulopetistas e bolsonaristas, o desfecho se encontra em um ponto além das disputas pelo voto do cidadão. O que virá no futuro próximo dependerá, mais uma vez, dos dados lançados por essas elites. Nesse sentido, tanto faz um ou outro, desde que o gerente de plantão seja útil, eficiente e efetivo. E o povo? O povo que se exploda!
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[1] Mark Fisher. Realismo Capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? – 1 ed. São Paulo. Autonomia Literária, 2024.
[2] Clara E. Mattei. A Ordem do Capital: como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo. 1 ed. São Paulo. Boitempo, 2023.
[3] https://economicsociology.org/2018/03/19/thatcherisms-greatest-achievement/
[4] “Trata-se mais de uma atmosfera abrangente, que condiciona não apenas a produção da cultura, mas também a regulação do trabalho e da educação – agindo como uma espécie de barreira invisível, bloqueando o pensamento e a ação”. (Mark Fisher, p. 33).
[5] É emblemático o abandono de conceitos cruciais para a compreensão das sociedades capitalistas pelas autointituladas correntes de esquerda, tais como relações de produção, luta de classes, classes dominantes, imperialismo, neocolonialismo, entre outros. Essa renúncia não se deve apenas ao propósito de se apartar dos fundamentos marxistas e leninistas ou fugir do estigma do comunismo (o eterno bicho-papão dos setores mais conservadores). Em verdade, ela ocorre porque os conceitos perdem a importância, frente à naturalização do sistema e à aceitação de sua inexorabilidade.
[6] “A austeridade é uma ferramenta para manter as relações sociais capitalistas de produção – para manter a classe. Em uma ordem do capital austera, protestos populares podem surgir, porém os manifestantes enfrentam um cenário político que os enfraquece estruturalmente: é difícil protestar contra a austeridade capitalista quando se depende do capitalismo para sobreviver”. (Clara E. Mattei, p. 395).
