
A Urgência de uma Nova Esquerda
José Mendes de Oliveira
22 de dezembro de 2024
“Uno de los principales problemas en América Latina es la falta de capacidade y liderazgo de izquierda para mitigar los severos niveles de corrupción endémicos. (...) Este es el outro gran error que há minado su desarrollo: en todos estos años América Latina há continuado, aun bajo los gobiernos de izquierda, com un modelo de basicamente producir y exportar produtos primários (...)”.
Noam Chomsky[1]
“Hay una tendencia fuerte [en Latinoamérica] a agredir y a barrer algunas conquistas Sociales que, aun siendo relativas, eran importantes, como derechos laborales, seguridade para los movimientos sindicales, herramientas de autodefensa de los trabajadores. Me parece que hoy todo eso está en juego en todos los países de América. Hay una tendencia a cambiar una serie de conquistas que habían conseguido los movimientos sindicales, los trabajadores, que les permitían estar un poco en mejores condiciones para su disputa por el capital y el ingreso nacional. Em toda América se tiende a recortar ahora, a ir para atrás”.
“A Lula en el poder lo rodea la burocracia; Lula en la oposición se recuesta en pueblo, en su gente”.
Pepe Mujica[2]
Nas primeiras semanas deste mês de dezembro, duas matérias veiculadas pelo G1 ilustraram o caráter ciclotímico das soluções governamentais no Brasil, quando se trata de manter o jogo dos interesses das elites nacionais, de suas várias frações de classes e dos entrelaços que mantêm, historicamente, com os interesses das corporações internacionais. A primeira foi publicada no dia 02/12 e abordou a união dos grandes bancos na defesa do Ministro da Fazenda e do seu arcabouço fiscal. A segunda, publicada no dia 06/12, teve como tema principal a troca de dirigentes em ministérios e a liberação de emendas parlamentares, antes do recesso de fim de ano, em função da obtenção de apoio dos congressistas para aprovar as medidas do pacote fiscal.
No primeiro caso, não obstante a choradeira inicial dos rentistas, particularmente dos que habitam o universo tenebroso da Faria Lima, que consideraram o pacote de cortes muito tímido, fica evidente que a política desenhada pelo dirigente do Ministério da Fazenda e sua equipe não se contrapõe aos interesses, pelo menos em parte, das elites nacionais, sobretudo de banqueiros, dos próprios rentistas e dos homens do agronegócio. Em verdade, os esforços do Ministro repetem muitos feitos do passado, traduzidos na forma de tetos e pacotes fiscais destinados, em suma, a garantir privilégios dos mais ricos e a infelicidade daqueles que só podem contar com o emprego (ou ocupação) e o salário para sobreviver.
A propósito, desde o seu início, a história da triste e melancólica terra de Macunaíma é marcada por duas ocorrências, que resistem aos tempos e às gerações: quando se trata da questão política, é pontilhada por golpes de Estado, quando se trata da questão econômica, é vincada por sucessivos pacotes de ajuste fiscal ou cortes de despesas que impactam políticas públicas e sociais. A sensação, independentemente das diferenças conjunturais, fica entre o déjà-vu e a percepção de uma enfadonha reprise. Mas, voltando às matérias, os jornais estamparam a expressiva demonstração de apoio dos bancos ao titular do Ministério da Fazenda, que, após o envio do pacote para o parlamento, foi agraciado com um almoço de apoio pelos comandantes dos maiores bancos do Brasil[3].
Na avaliação dos dirigentes dessas organizações, de acordo com a imprensa, não interessa um Ministro da Fazenda enfraquecido (particularmente devido à natureza antipopular das medidas), porque ele é o melhor nome dentro do PT para o cargo e consegue obter o possível dentro do governo para ajustar as contas públicas. Leia-se: para assegurar recursos destinados a garantir os pagamentos da dívida pública ou cobrir os lucros obtidos com a aquisição de títulos públicos por banqueiros e rentistas. Além de ser admitido como um bom burocrata a serviço da causa, o Ministro mereceu o reconhecimento por ser uma pessoa humilde (vai saber se isso não é sinônimo de submissão!), que embevecido pelo elogio admitiu aos poderosos do sistema financeiro que o pacote de cortes não foi ousado o suficiente e que, por conseguinte, deixava empenhada a promessa de mais cortes para o futuro em função das famigeradas metas fiscais (o que certamente colocará em risco os fundos da educação e saúde!). Não constam, pelo menos em registros da impressa, que algo semelhante tenha sido feito com outros setores da sociedade, antes ou depois de concebido e encaminhado o pacote para a apreciação no Congresso.
O que ainda pode ser considerado um vício na política brasileira, como também parte de seu anedotário - e aqui temos o segundo caso -, é a já habitual transação financeira com os parlamentares nos processos de aprovação dos pacotes fiscais. Como se diz em terras de Macunaíma: não há almoço grátis. Em geral, a tal coalizão tupiniquim não se traduz apenas pela vergonhosa ocupação de cargos na Esplanada dos Ministérios, mas também, e sobretudo, pelos recursos que se destinam a deputados e senadores e que ninguém sabe exatamente como são utilizados (ainda que se saiba, mas não se possa mencionar em voz alta!). Para aprovar o pacote de maldades, ainda que pincelado com promessas quiméricas de uma redução de impostos para uma parcela das classes médias, o Executivo fez a previsão inicial da liberação de R$ 10 bilhões em emendas[4], que parece ter se concretizado em torno de R$ 7,7 bilhões liberados no dia 16/12[5]. Pode-se discutir a precisão do conceito, mas utilizar recursos públicos para custear ações políticas deletérias sobre os contribuintes, particularmente para comprar o apoio de parlamentares venais, não é outra coisa que uma outra forma da velha e indecente corrupção a que se refere Noam Chomsky.
Além das emendas parlamentares, encontra-se no radar uma ampla reforma ministerial, que deve acontecer no início de 2025. Os jornais especulam sobre a possibilidade do atual Presidente do Senado tornar-se, após o término de seu mandato no final de 2024, Ministro da Indústria e Comércio, ainda que o candidato busque demonstrar o seu desinteresse[6]. Também comentam o que seria muito escandaloso: uma pasta para o Presidente da Câmara, indisfarçável simpatizante do bolsonarismo, ou a admissão de uma pessoa de sua lavra para o cobiçado Ministério da Saúde[7]. Em outras palavras, a Frente Governista e seu principal partido, que insiste em se autointitular de esquerda, caminha a passos largos para algo que parece transcender o centro do espectro político em direção à direita (ainda que a direita fisiológica do influente Centrão). O fato é que, depois do arcabouço fiscal e das medidas neoliberais, dificilmente poder-se-á afirmar de forma categórica que o PT permanece um partido de esquerda ou sequer progressista (talvez somente liberal social!). Em verdade, a cada dia, parece-se mais com o seu velho antagonista PSDB com mesclas do antigo PMDB. Qual o futuro disso, talvez ninguém saiba, a não ser o eleitor que se sente traído e que certamente deverá buscar qualquer outra opção nas urnas em 2026, ainda que seja no extremo o voto nulo ou em branco.
Para os que sempre alimentaram algum ideal socialista ou a utopia de uma revolução brasileira, ou ainda para aqueles que sonharam com um país mais desenvolvido sem o cabresto do agronegócio, resta a esperança de que possa nascer uma outra esquerda no Brasil, mais radical e não alinhada com o pragmatismo do lulopetismo, capaz de propor uma agenda política para o país a partir da compreensão de sua própria história, de sua inserção no cenário do capitalismo contemporâneo e de suas atuais contradições e demandas[8]. A crença na possibilidade de aliança com uma burguesia mudancista no país (revolucionária seria demais!) já não cabe mais, depois de tantas demonstrações de resistência das elites e tentativas de golpes – alguns inclusive bem-sucedidos -, marcas inegáveis de grupos e lideranças empedernidamente autocráticos. Ademais o mundo mudou e a luta de classes, bem como a relação capital-trabalho, exige o entendimento dentro de um cenário marcado pela financeirização do capital, expansão das tecnologias de automação e precarização do trabalho assalariado. É necessária uma nova esquerda, que saiba agir no espaço político preservando sua identidade e também de forma democrática e aberta na interação com os vários segmentos sociais, mas sobretudo capaz de teorizar de forma reflexiva e estratégica sobre a realidade do país e sobre a geopolítica que se desenha para as próximas décadas no continente e no mundo.
Também seria alvissareira a multiplicação de canais de comunicação e informação alternativos não alinhados, tendo em vista que parte significativa da imprensa autointitulada progressista tornou-se governista (em alguns aspectos muito próximas do modus operandi da mídia hegemônica que tanto demonizam!), sobretudo aquela que passou a contar com recursos publicitários oriundos do Governo federal (estamos assistindo de forma constrangedora ao surgimento de lulaminions, influenciados por essas mídias, cegos, acríticos e agressivos nas redes sociais!). Torna-se urgente a existência de uma esquerda mais radical e ciosa do papel que deve exercer para além da esfera do poder instituído, senão não restará qualquer tipo de reação construtiva no dia seguinte. Governos não são eternos e, de acordo com a própria lógica democrática, é muito natural que alternâncias aconteçam. A reflexão crítica não pode ser rejeitada e abandonada em função do conjuntural, assim como os ideais de esquerda não podem se perder no momento pontual de um governo de coalizões e arranjos para a manutenção de uma falsa hegemonia. Precisamos urgentemente de uma esquerda autêntica e compromissada pelo menos com os princípios de justiça e equidade social, capaz de desafiar as agendas governamentais conservadoras e retrógadas sempre que necessário. Caso contrário, o que restará quando a Frente Governista não estiver mais aí, e deixar como herança seus feitos e efeitos políticos mais nefastos, agora nas mãos de grupos assumidamente reacionários? Adiantará chorar sobre o leite derramado?
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[1] Saúl Alvídrez (org.). Sobreviviendo al Siglo XXI: Chomsky & Mujica. Montevideo. Penguim, 2023 (p. 108).
[2] Idem. p.110-114.
[7]https://www.em.com.br/politica/2024/12/7011853-lira-nao-quer-mas-no-planalto-e-apontado-como-ministeriavel.html e https://www.metropoles.com/colunas/igor-gadelha/o-que-lula-ja-conversou-com-lira-sobre-o-futuro-politico-do-deputado#google_vignette.
[8] Embora o país possa contar com legendas institucionalizadas ou organizadas em partidos, que se posicionam como de esquerda ou como progressistas, a exemplo do PSOL, Rede e PCB, na prática observa-se que de alguma forma orbitam o campo de influências do lulopetismo. Não há entre eles uma opção que assuma, de fato, uma oposição reflexiva, crítica e propositiva de forma radical em relação à Frente Governista orquestrada e liderada pelo PT. Esses partidos, em verdade, integram a própria Frente e, no parlamento, ainda que possam divergir em algumas pautas, em geral concedem votos positivos às propostas governamentais.
