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Ainda a Velha República

José Mendes de Oliveira

07 de setembro de 2021

 

Para muita gente, no desespero de encontrar uma explicação para o que tem ocorrido na sociedade brasileira desde o golpe institucional de 2016, admitir que o país foi tomado por loucos parece a opção mais razoável ou sensata. Porém, como denuncia a sabedoria dos ditados populares, loucos rasgam dinheiro e esse não é o caso. O que estamos assistindo sistematicamente na terra brasilis é mais um capítulo do exercício do poder, na sua forma mais explícita e despudorada, pelas elites caipiras deste triste país. O descaso com o espaço público, o assalto ao Estado e o desrespeito em relação às regras e normas, inclusive as que se referem ao bom senso é a revelação da verdadeira natureza das elites dominantes brasileiras, que perseguem a riqueza a qualquer custo, inclusive rifando a democracia e o estado de direito. Daí o paradoxo da utilização dos preceitos da democracia para destruir a própria democracia. Admitir que o país foi dominado, de uma hora para outra, por um mentecapto e seus acólitos é esconder a verdade, que, admitida, causaria extrema vergonha ao mais desavergonhado dos seres humanos.

O fato é de fácil esclarecimento: as elites brasileiras são, historicamente, depredatórias. A aceitação do capitalismo selvagem não é uma fase de um processo evolutivo a ser superada ou um vacilo momentâneo, uma distorção passageira do ponto de vista cognitivo e moral, porque é um modelo estrutural, adotado e defendido com coerência e objetividade. É por essa razão que a questão tupiniquim não se resume apenas às engrenagens de um sistema econômico desajeitado, anacrônico e carente de modernização (algo que uma simples engenharia econômica liberal resolveria). Há um conjunto de valores consolidado na base de tudo isso, por intermédio do qual as desigualdades e os preconceitos são justificados e atualizados. O histórico escravocrata, as desigualdades institucionalizadas e a lógica da exclusão que formatam a estrutura social viabilizam a existência de um sistema de privilégios, um sistema de marcas não exatamente igual as castas indianas, mas que provoca ruídos semelhantes no que se refere à rigidez ao impedir a mobilidade social por intermédio do esforço, do trabalho ou do empenho pessoal. O sistema tupiniquim é uma máquina de frustração de talentos e beneficiadora das diversas formas de traquinagem destinadas à aquisição de prestígio e riquezas. É o país da malandragem em roupa de gala e do papo furado de inúmeros Malasartes.  Por aqui predomina a falsa acepção liberal da economia capitalista, bem como o uso oportunista do conceito de meritocracia, porque não há de fato qualquer vestígio de empreendedorismo submetido ao esforço, à inventividade, à concorrência e, sobretudo, aos riscos. Na maior parte dos casos, o sucesso ainda é uma benfeitoria familiar, que na prática não difere muito do espírito da cosa nostra.

Os pretensos empreendedores brasileiros são como sanguessugas ou bodiões, que não sobrevivem sem a cumplicidade da família e da forte presença do Estado. O discurso da privatização do patrimônio público é mera tergiversação em função do patrimonialismo mais descarado: o que não se deseja é o Estado promotor de políticas sociais, do Estado promotor do bem-estar coletivo, mas a usurpação dos bens públicos e dos empreendimentos bem sucedidos no setor público, a exemplo das empresas estatais rentáveis. A prática é ter nas mãos, sem gastar um centavo ou expelir uma gota de suor, o resultado de anos de investimentos do conjunto da população. Em outras palavras, quando o arremedo da burguesia brasileira levanta a bandeira das privatizações e das desregulamentações, pratica indisfarçável ato de pirataria em prol das intenções mais sórdidas, ou seja, assalto aos cofres públicos. As políticas de bem-estar, bem como aqueles que as defendem, são cinicamente taxadas de ações comunistas a ser combatidas em nome da pátria, da família e de uma estranha concepção de deus. O exemplo mais emblemático ocorre com o horroroso agronegócio brasileiro, louvado pela mídia hegemônica e monopolista como tech, pop e, hereticamente, como onipotente (agro é tudo!). Não é preciso ser gênio para ver e perceber que o agro é a contradição de tudo isso: nascido no berço de uma oligarquia escravocrata, encontra-se historicamente nas mãos de poucas famílias de ruralistas e atualmente sob o controle dos interesses de multinacionais, produz exclusivamente commodities, invade terras e causa destruição do meio ambiente em larga escala, gera poucos empregos devido à elevada mecanização e não produz qualquer tipo de riqueza acumulativa para o bem do país. Em suma, a turma do agro age como saúvas enlouquecidas em busca de dinheiro, de forma resoluta e inabalável por meio dos canais regulares e da contravenção (como invasão de terras públicas e reservas indígenas). Essa gente poderosa, além da histórica proteção de seus próprios jagunços e das forças de segurança institucionalizadas, encontra-se muito bem representada no parlamento brasileiro, onde forma a conhecida bancada do gado e do agronegócio. Para complicar, mantém também um cordão umbilical com o setor financeiro e com a famosa bancada da bala, constituindo um segmento plutocrático quase invencível.

Transcorridas cerca de sete décadas, desde a publicação do estudo de Victor Nunes Leal – Coronelismo, Enxada e Voto -, as observações do eminente professor permanecem muito válidas: o Brasil carece de um sistema representativo democrático autêntico e isso depende em grande proporção da transformação de suas bases ruralistas, da libertação da população pela educação, pela ampliação do mercado de trabalho e, principalmente, pela consolidação da cidadania no país. O coronelismo pode ter sido o traço marcante da Velha República, mas tudo indica que ele não foi totalmente superado, porque sua lógica, seus valores e práticas são mantidos pelo conjunto das elites. Talvez seja por isso que assistimos, meio que abestalhados, a apresentação parlamentar de propostas de reformas com caráter pré-getulista – sejam elas trabalhistas, referentes à questão fundiária, à questão ambiental ou aos direitos dos povos originários -, por parte dos setores mais conservadores do Congresso, entre eles as bancadas do agro e dos mandriões do mercado financeiro. A insistência no atraso é o sinal mais evidente de que as elites brasileiras não evoluíram e são essencialmente retrógadas. O Brasil transformado no celeiro das commodities caminha na contramão da modernidade e mantém-se na periferia do protagonismo no tabuleiro do xadrez internacional. Essa situação é agravada com a ignorância da população, que afastada do acesso à educação e, cada vez mais, influenciada pelas narrativas dos meios de comunicação hegemônicos - eles também comprometidos com o agronegócio e com o mercado financeiro em âmbito nacional e internacional -, bem como pelas informações destorcidas das mídias sociais, não consegue ler ou interpretar a própria realidade.

O povo enterrado na ignorância direciona o seu voto para os representantes dos interesses dos grupos de elite, que também exercem seu poder de influência nos acordos impostos pelo sistema de coalizão e manutenção da famigerada governabilidade no país. O sistema político brasileiro mantém, de forma renitente, todas as facilidades para o assalto do populismo e do autoritarismo. Em verdade, o mundo tem se tornado mais complexo e desafiador, ao passo que a sociedade brasileira, enterrada em suas inúmeras contradições, se torna mais incompetente para lidar com o futuro. O resultado parece ser inevitável: o país deve permanecer no atraso, na periferia das grandes decisões no cenário internacional e amargando indicadores negativos no que se refere ao desenvolvimento humano de sua população nas próximas décadas. Tudo indica que, após as esperanças plantadas com a Nova República, o país deu uma guinada em sentido contrário: retomou os vícios da Velha República e a sanha pelo golpismo dos mandaletes, agora nutrida pela aliança com as células da extrema-direita internacional. Tudo isso embalado pelo mau gosto do pop country, que traduz adequadamente a estética musical da pequena burguesia urbana, cada vez mais conservadora, emburrecida e embalada pelo forte desejo de ser dona da Casa Grande ou simplesmente ser agro, ainda que essa condição se resuma a comprar um Ford Ranger, meter um chapéu de boiadeiro sobre os miolos intumescidos e a desfilar pelas cidades ao som de músicas bregas em altíssimo volume (aliás muito distantes das verdadeiras raízes sertanejas). A sensação é a de que até hoje não conseguimos, com autonomia e determinação, superarmos o atraso. Infelizmente, ainda que tenhamos trilhado um longo caminho, com pinceladas de modernização aqui e acolá, permanecemos no imaginário e nas práticas no contexto da Velha República com todos os seus males políticos, econômicos e sociais.

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