
Ato Essencialmente Pedagógico
José Mendes de Oliveira
09 de janeiro de 2024
Não obstante a disposição e insistência do governo da Frente Ampla em pregar a união e reconstrução de um país polarizado e em plena guerra ideológica, repetindo-se novamente a tradicional tendência conciliadora das elites e segmentos médios do país, que serve obviamente à reprodução da estrutura de estratificação e de inúmeras injustiças incrustadas na história brasileira, contornando ou desencorajando o desenlace dos conflitos mais aguerridos, o mal denominado evento Democracia Inabalada, organizado e realizado no dia 08 de janeiro em memória e repúdio à tentativa de Golpe de Estado ocorrida na mesma data em 2023 sob as hostes do bolsonarismo e de suas lideranças militares e civis, teve um papel inquestionavelmente pedagógico, além de constituir evidência insofismável, para aqueles e aquelas que ainda insistem que é possível redimir as mentes e corações conquistados pela extrema direita no país. Por que é válida essa ilação? Porque os fatos a validam. Para tanto, basta verificar quem esteve presente no evento, ou seja, além do próprio presidente da República, lá estiveram o presidente do Senado, o presidente do STF, o presidente do TSE e o procurador-geral da República, que participaram da composição da mesa. Ficou evidente a ausência do presidente da Câmara, que, conhecidamente, apoiou a reeleição do ex-presidente Bolsonaro no pleito de 2022. É relevante destacar que, entre os ministros do STF presentes na plateia, além daqueles que compuseram a mesa, 4 se ausentaram e, entre eles, dois indicados pelo referido ex-presidente durante sua gestão (André Mendonça e Nunes Marques).
No entanto, o mais significativo, ou mais emblemático, além das ausências do presidente da Câmara e de seus dois vice-presidentes, foram as ausências de governadores que se alinham direta ou indiretamente com a extrema direita bolsonarista. No universo dos 27 representantes das unidades federativas brasileiras, 14 não aceitaram o convite para a participação no evento: Distrito Federal (MDB), Mato Grosso do Sul (PSDB), Goiás (União), Mato Grosso (União), Minas Gerais (Novo), São Paulo (Republicanos), Rio de Janeiro (PL), Paraná (PSD), Santa Catarina (PL), Roraima (PP), Tocantins (Republicanos), Acre (PP), Amazonas (União) e Alagoas (MDB). Além disso, a falta dos representantes da oposição, inclusive de integrantes do malfadado Centrão, não casou e não causa nenhum tipo de surpresa devido ao seu elevado grau de obviedade.
De qualquer forma, chama a atenção o percentual de governadores, que embora eleitos em um processo democrático (e por intermédio de urnas eletrônicas!), estão dispostos a associar a própria imagem com a defesa de golpes e regimes autocráticos e, o que agride consideravelmente o bom-senso, se preciso atuar para destruir a própria democracia. Não privilegiar um evento dedicado à elevação dos valores democráticos, não tem outro significado, a não ser o do desprezo por esses valores. Esses políticos mandam um recado muito claro, que aliás é o mesmo das elites que representam ou das quais são integrantes, no sentido de que o poder, particularmente o econômico, prescinde da democracia. As bancadas mais reacionárias do parlamento brasileiro, sobressaindo a bancada do agronegócio, em verdade, ao apoiar atos antidemocráticos reiteram uma forma de ser das elites brasileiras, que sempre estiveram dispostas, desde o primeiro ato golpista que edificou a república tupiniquim (aliás militarizada no nascedouro!), à adoção de uma postura autocrática para defender e manter seus interesses de forma intransigente.
O evento é pedagógico porque explicita, de forma muito evidente, o fato de que o discurso da conciliação e da união não se sustenta. A extrema direita brasileira tem sangue nos olhos e está pronta para tocar fogo no circo. É importante destacar que entre os 14 governadores ausentes (a propósito número muito expressivo!), que se alinham abertamente à direita e à extrema direita, pelo menos 5 são oriundos de unidades que exercem peso econômico significativo no país e envolvem representantes aguerridos do bolsonarismo dentro e fora do parlamento: São Paulo (PIB = R$ 2.719.751), Rio de Janeiro (PIB = R$ 949.301), Minas Gerais (PIB = R$ 857.593), Paraná (PI = R$ 549.973) e Santa Catarina (PIB = 428.571)[1]. A observação das siglas partidárias é outro meio de revelação de inúmeras contradições que afetam a atual gestão governamental, porque coloca em dúvida a efetividade do arcaico e já ultrapassado sistema de coalizões, que foi predominante na política brasileira até meados de 2015, quando é arquitetado o golpe parlamentar para derrubar a presidente Dilma Rousseff. Parte dessas siglas, se não for a maioria, encontra-se hoje dentro do Centrão e algumas participam do governo em relação ao qual fazem muitas exigências e devolvem muito pouco em termos de apoio ou defesa das agendas. A questão se complicou um pouco mais para a tradicional veia conciliatória do sistema político tupiniquim após o advento do bolsonarismo, porque, hoje, a concessão de verbas vultosas (para emendas e fundo eleitoral), bem como de cargos e funções na administração pública, parece não ser capaz de romper ou pelo menos fragilizar a fidelidade dos acólitos direitistas às suas convicções ideológicas. Parece que os únicos que já não têm mais uma ideologia para defender são os autodenominados progressistas.
O país está dividido e a cisão não vai desaparecer de hoje para amanhã. Do meu ponto de vista, ela veio para ficar e isso não é, embora assustador, algo totalmente negativo. Dessa forma, o país tem se explicitado cada vez mais (ou mostrado a sua real cara!) e arrebentado com os mitos falseadores da realidade e promotores do atraso, a exemplo da passividade dos brasileiros, de sua bondade quase congênita, de sua histórica cordialidade, de sua inteligência e versatilidade para lidar com situações controversas e, principalmente, de sua tolerância às diferenças como se fosse per natura um bando de democratas genuínos nos trópicos. Não somos nada disso e não é preciso ir além da esquina para ver um país muito feio, pouco solidário, com muita violência, demonstração das mais variadas formas de autoritarismo, injustiças e muito desrespeito à dignidade humana. Portanto, parece que algo diferente precisa acontecer, além da postura insípida de um governo que se coloca como o administrador da ordem, da manutenção (sabe-se lá até quando!) da normalidade institucional e da fraternidade de pessoas que devem constituir um único povo, ainda que as evidências apontem para o contrário. Não somos um único povo, não somos iguais nem tolerantes e é por isso mesmo que não podemos deixar a democracia morrer, o que sugere, então, que devamos lidar com o conflito de uma forma diferente. Mas como? Encarando-o de frente, dando nome aos bois e enfrentando o que deve ser enfrentado, sobretudo no que se refere às nossas mazelas sociais e ao enfrentamento político-ideológico explícito. Há pessoas de direita e de extrema-direita, assim como há racistas e defensores do apartheid social no Brasil, e elas precisam ser combatidas na arena política. Trata-se agora de estabelecer parâmetros e estratégias para a conquista da hegemonia de pensamentos e elaboração de agendas genuinamente progressistas, ou se quiserem e ainda for possível utilizar o conceito – agendas realmente de esquerda -, e não mais limpar clareiras para a conciliação. A disputa situa-se no campo econômico obviamente (o que envolve certamente a luta de classes!), mas também ela tem seu correspondente no campo ideológico. É necessário, em suma, resgatar as utopias de um mundo que pode ser mais humanista e uma alternativa ao capitalismo desestruturador e destrutivo. Em outras palavras, é preciso romper com a inércia, que tomou conta após o fim da Guerra Fria e refutar a ideia, sem pé e sem cabeça, de que o capitalismo venceu e a história acabou.
Esse pode ser um processo complexo, tendo em vista que o país não é uma ilha no meio do mundo, onde os processos sociais, econômicos e políticos possam ocorrer com total autonomia e sem a interferência de fatores externos. Não seríamos ingênuos ao ponto de admitir essa hipótese, mas também não gostaríamos de nos reduzir à postura dos pragmáticos da atual realpolitik tupiniquim, que insistem nos conchavos, nas conversações infrutíferas, nas coalizões e pactos que não geram nada além de inúmeras e falsas promessas (lembrem-se: as rãs jamais devem confiar nos escorpiões!). Insistimos, esse é o pragmatismo burro, que mata utopias e sonhos, que exclui a possibilidade da renovação e da ampliação da esfera da ação política, que esteriliza a política e a confina às mesas e aos sussurros dos gabinetes palacianos. Para esse tipo de política, já aversiva aos movimentos sociais, à relevância da mobilização popular, não resta outro caminho a não ser desacreditar-se com o passar do tempo e, consequentemente, pavimentar a avenida para o oportunismo ciclotímico dos reacionários e dos aventureiros extremistas. Embora seja difícil desacreditar a força persuasiva da realidade, e dos tantos episódios negativos registrados na história do Brasil, pontilhada de incontáveis golpes, ainda precisamos acreditar que nós brasileiros com vocação democrática não merecemos esse destino, como se em um desatino ou vítimas de uma piada sem graça dos deuses, estivéssemos condenados à maldição cruel de Sísifo.
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[1] PIB em 2021 (1.000.000 R$) por Unidade Federativa. Dados do IBGE. Consultar em https://www.ibge.gov.br/explica/pib.php.
