
Impasse e uma Semente de Esperança
José Mendes de Oliveira
22 de março de 2024,
Já houve um tempo em que a perspectiva crítica era uma exigência não só acadêmica, mas uma conduta saudável para qualquer cidadão com acesso à leitura ou capaz de se incomodar com as incongruências do mundo. Naquela época, lembro-me que os professores, então mais críticos que os de hoje, alertavam para as potencialidades e limites dos indicadores sociais e econômicos disponíveis, que eram muito utilizados nos livros e matérias de diversos campos temáticos. Entre eles, lembro-me como se fosse hoje, observava-se o famigerado Produto Interno Bruto, conhecido pela sigla PIB, com muita cautela. Por quê? Para responder, precisamos antes considerar o que abarca o indicador, ou seja, qual o seu significado. Grosso modo ou de forma muito simplificada é a soma de todos os bens e serviços produzidos por um país, estado ou cidade em um determinado espaço de tempo (geralmente o curso de um ano). Certo, mas qual o problema? O indicador parece ser uma boa medida para aquilatar o sucesso de uma economia nacional, a exemplo do que tem alardeado os otimistas e empolgados com a gestão da área econômica do atual governo brasileiro. Entretanto, em se tratando de um país tão desigual e com forte concentração de renda como é o caso do Brasil, o PIB é um péssimo indicador quando se trata de sustentar a melhoria efetiva da situação da população, porque pode esconder, o que quase sempre acontece, um acúmulo de riquezas concentradas nas mãos de poucos afortunados.
Essa seria uma razão mais do que suficiente para conter os ânimos festivos de dentro e de fora do governo com o crescimento de 2,9% do PIB em 2023, puxado principalmente pelo desempenho do setor agropecuário (setor extremamente conservador e excessivamente subsidiado pelo Estado no Brasil), mais especificamente da produção e exportação de soja. No entanto, a turma de dentro e os torcedores do entorno festejaram como se tivessem ganhado a taça do campeonato (ou como eles mesmos definiram: o “pibão”!), sobretudo porque puderam esfregar os números na cara dos críticos, que alimentavam a expectativa de um crescimento limitado em 1% (o que pode ser lido mais apropriadamente como torcida de adversários). Porém, colocando de lado os embates políticos, que certamente fazem parte do jogo, a realidade talvez seja mais bem retratada pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que, de acordo com dados recentes do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) encontra-se no patamar de 0,76 (varia de 0 a 1), além do fato de que o país amarga a 89ª posição no ranking global de desenvolvimento da ONU. É bem verdade que o próprio IDH ainda se sustenta, no que se refere à renda, no cálculo do PIB per capita, mas pesa na balança dois outros fatores de inquestionável importância: saúde e educação. No primeiro caso, destacam-se nos cálculos a taxa da mortalidade infantil, as políticas voltadas para a saúde pública e as ações em torna da vacinação e distribuição de medicamentos. No segundo caso, pesam a média de permanência na escola, o controle da evasão escolar e ações de fomento à educação. Em ambos os casos, a situação do país piorou significativamente com o blackout bolsonarista durante os quatros anos de governo transloucado e, certamente, com todos os impactos negativos advindos da pandemia da Covid 19. De qualquer forma, além das pioras conjunturais, esses dois fatores são tratados de forma insatisfatória pelos sucessivos governos brasileiros, sejam eles autoproclamados progressistas ou não.
Em suma, o PIB não é certamente o indicador mais confiável para afirmar que o país vai bem (ainda que possa ser um “pibão”), sobretudo quando se considera o histórico e cristalizado comportamento das elites econômicas: socializar perdas e privatizar ganhos. Porém, além das tendências macroeconômicas, vale a pena ajeitar a lupa para enxergar algo mais prosaico, que atinge a maior parte dos brasileiros e, talvez, seja um dos motivos para a avaliação negativa do governo nas pesquisas mais recentes realizadas pelos institutos de pesquisa: os preços de diversos itens, particularmente de gêneros alimentícios, subiram consideravelmente entre janeiro e fevereiro de 2024. A inflação oficial do país, de acordo com dados do IBGE, fechou o mês de fevereiro em 0,83%. Esse percentual equivale a quase 100% de aumento em relação ao mês de janeiro. O fato é que o IBGE evidenciou, em notícia veiculada ainda na primeira quinzena do mês de março, o impacto de diversos aumentos no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Além do aumento no preço dos alimentos e bebidas (0,95%), pesaram na balança o reajuste de mensalidades escolares (4,98%), bem como o encarecimento dos transportes (0,72%), combustíveis (2,93%) e serviços de comunicação (3,49%), tais como TV por assinatura e Internet. Ainda de acordo com os dados divulgados, o IPCA soma, no acumulado de 12 meses, 4,5%. Não é preciso que o cidadão comum vasculhe as tabelas e consulte os índices oficiais, porque ele sente essas alterações em seu dia-a-dia, quando entra no mercado ou vai à feira próxima de sua casa. Tudo isso pesa não só nos bolsos daqueles que auferem baixos salários, mas também nos bolsos dos raivosos estratos medianos, que, do ponto de vista político-ideológico, têm namorado correntes autoritárias e tendências fascistas há muito tempo. Essas ocorrências talvez sejam o motivo mais significativo e efetivo para explicar por que a popularidade do governo anda em baixa, e não adianta muito as justificativas que apontam os inevitáveis aumentos e despesas confluentes no início do ano (basicamente educação e impostos) ou a questão da sazonalidade no caso dos alimentos. O consumidor dificilmente consegue fugir da evidência inexorável dos aumentos e do reduzido poder de compra permitido por seu salário, independentemente das explicações mais elaboradas dos acadêmicos, técnicos e jornalistas do campo econômico. Com isso surge a decepção e, nos casos mais extremos, a raiva.
É fato que o mar não está para peixe na contemporaneidade. O sistema capitalista se estrebucha e, após a onda mais agressiva do neoliberalismo que se alastrou mundo afora após a Guerra Fria, apela abertamente para o fascismo encabeçado pela extrema direita para segurar e assegurar o status quo. A situação brasileira não foge às tendências mundiais e, pode-se dizer, tem tudo para ser agravada quando se considera a natureza subdesenvolvida, dependente e autocrática das elites nacionais. Não é por menos que o país convive com a constante ameaça dos golpes de Estado, urdidos por essas elites e comandados pelas fieis e servis forças militares, que, historicamente, alimentam o espírito das quarteladas. O governo da frente ampla trouxe um certo alento para a frágil democracia brasileira, mas pode se complicar não só devido aos tropeços econômicos, caso não abandone a postura triunfalista (e levantar a bandeira do PIB parece ser algo do tipo) e caso não acorde para traçar estratégias eficazes que o torne capaz de lidar com a polarização política. O país tem problemas estruturais, que, certamente, um governo de frente ampla não conseguirá resolver em quatro ou oito anos de gestão. Os desafios requerem movimentos sociais mais contundentes, que parecem sumir no horizonte com o alastramento da ignorância, do obscurantismo, do negacionismo e das crenças insanas retroalimentadas pelas teologias da prosperidade e do domínio. De qualquer forma, na ausência de uma utopia revolucionária viável, resta acreditar que a melhoria dos indicadores sociais pode ser ainda uma boa opção, destacando-se o acesso à educação laica e de boa qualidade. Daí que parece ser indispensável ir além do PIB e reservar um pouco mais de atenção ao IDH. É obviamente relevante assegurar que as pessoas tenham acesso a renda, o que obviamente requer a retomada do crescimento econômico, desde que o modelo não repita o diapasão da concentração de riquezas (o que não parece ser uma tendência muito evidente), mas é também relevante investir em políticas, a exemplo da educacional, que possam garantir a construção de uma perspectiva diferente para a população, capaz de reforçar os princípios da cidadania e arrefecer a conformação do mero assistencialismo. A política de pacto com as elites e assistência para os mais pobres (concentrados na faixa de 1 a 2 salários mínimos) não parece ser a alternativa mais adequada para os dias atuais, porque não garante mais o apoio eleitoral como fruto de agradecimento ou reconhecimento, principalmente dos segmentos mais carentes: o eleitorado mais ideologizado e hipnotizado pelo populismo de direita abre os braços para receber bolsas e cotas, mas continua votando em seus candidatos de extrema direita. Em suma, a ideia anacrônica de trazer os pobres para o mercado como consumidores não foi suficiente no passado e não será funcional no presente, bem como está fadada ao fracasso a estratégica esgarçada do pacto com as elites, que sempre foi precário e incapaz de impedir a verve golpista. Ademais, as políticas assistencialistas são insuficientes, porque geralmente não abarcam os segmentos medianos (entre 3 e 10 salários mínimos), que são impactados com aumentos abusivos em itens como moradia, mobilidade, saúde e educação.
A situação é a mesma da sinuca de bico: o governo não pode falhar na questão econômica e, para tanto precisa ir além das políticas contracionistas que agradam as elites rentistas, caso contrário perderá apoio nos segmentos assalariados mais pobres (sobretudo com a consequente falta de investimentos em políticas sociais) e inevitavelmente nos setores medianos, que lidam com a pressão dos preços e com as restrições ao crédito. Da mesma forma, do ponto de vista político, não pode deslocar-se muito para a direita em seus acordos e pactos, caso contrário perde a sua parca base de apoio que se considera progressista. O desafio é o do equilibrista, mas, mais que isso, é o de ser ousado para retomar o ideário de uma esquerda (difícil dizer qual!), que, atualmente, não consegue dialogar adequadamente com os diversos segmentos da sociedade. Essa alternativa parece estar cada vez mais distante de uma possibilidade real, não só porque o governo não é efetivamente de esquerda (aquela que combate tenazmente as desigualdades e as injustiças sociais) , mas pelas opções conciliatórias que adota em relação às elites e aos parlamentares que as representam, aos militares, às corporações empoderadas do setor público e à imprensa hegemônica. A sorte do governo está lançada e talvez pouco se possa dizer sobre o futuro, ou seja, qualquer coisa pode acontecer considerando-se apenas a perspectiva eleitoral. No caso específico da contenção do bolsonarismo, uma esperança para muitos dos eleitores da frente ampla, parece estar bastante evidente que o governo é incapaz de lidar com a polarização bélica imposta pela extrema direita. O discurso da conciliação – traduzido no dístico união e reconstrução – é a expressão mais explícita de uma postura frágil dentro de um ambiente de guerra ideológica e profusão de mentiras como arma política (a propósito, o tal dístico lembra aquele outro: o da ordem e progresso). A esperança de contenção dos arroubos da extrema direita tem sido, por isso mesmo, terceirizada para o Judiciário ou mais especificamente para o STF. Até quando e se de fato o Supremo vai conseguir conter o avanço do fascismo tupiniquim ninguém sabe ou pode predizer. Os ares são sufocantes e o clima é angustiante, mas tem-se que apostar pelo menos no mínimo, e esse mínimo pode ser, ainda que de forma tímida, a insistência na realização de políticas sociais que possam auxiliar o resgate da cidadania, abarcando inclusive os setores medianos da sociedade. Além de comida no prato, uma promessa constante no discurso lulista, é crucial garantir padrões razoáveis de saúde (não só com reforço do SUS, mas também com regulação contundente dos planos de saúde em função de mantê-los compromissados com algum princípio humanitário e não somente com o auferimento abusivo de lucros) e acesso a uma educação de elevada qualidade, mais voltada à formação crítica dos sujeitos e disposta a combater as tendências tenebrosas do obscurantismo (atualmente retroalimentado pelo fundamentalismo religioso). Em suma, alguma semente de esperança deve ser plantada, caso contrário o futuro poderá ser mais sinistro que o passado recente e, infelizmente, a derrota eleitoral dos autointitulados progressistas favas contadas.
