
Leão ou Gatinho?
José Mendes de Oliveira
25 de julho de 2025
É da natureza dos felinos de grande porte rugir, ou seja, eles emitem som forte e fragoroso. Os leões e tigres utilizam o potencial de seus rugidos para demonstrar irritação, defender territórios, ameaçar rivais e demonstrar domínio. Os felinos de pequeno porte, como os gatos, miam. Embora tenham suas garras e dentes como instrumentos de defesa, os felinos domésticos geralmente miam ou ronronam quando estão carentes, estressados, sentem dor e medo, requerem atenção ou precisam ser acariciados. Metaforicamente, no campo das disputas políticas nacionais e internacionais, há agentes públicos, sociedades e países que se comportam como leões e outros que se comportam como gatos. No que se refere aos agentes, não é incomum figuras que rugem de forma eloquente, mas miam quando se trata de agir ou tomar decisões. No tabuleiro das disputas, faz parte do jogo a capacidade dos oponentes de perceber quando o adversário é um leão ou apenas um gatinho, porque isso influencia suas estratégias.
Na atual conjuntura da política internacional em que os EUA, como potência baqueada, buscam proteger seus interesses por intermédio da guerra comercial – mas também das ações bélicas de fato -, há lideranças em países coagidos que agem como leões, ainda que não prescindam da negociação, e outras que se refugiam amedrontadas no cantinho escuro da sala. Aquelas que agem como felinos de grande porte não o fazem por mero instinto ou figuração, mas como estratégia para salvaguardarem a soberania frente ao agressor, porque agir como um felino acuado é demonstrar fragilidade e entregar-se ao sadismo de um país imperialista acostumado a cometer atrocidades mundo a fora. O Brasil se encontra, como um dos países fustigados, na situação de decidir se age como leão ou como gato. O que assusta o cidadão brasileiro, que tem os miolos no lugar e algum brio, é a ambiguidade de suas lideranças, que se contorcem entre a lealdade ao país e a profissão de fé ao Império, ou seja, o dilema existencial entre ser leão ou gato doméstico.
Não parece que a tibieza em relação à defesa do país seja um atributo exclusivo das elites e de seus acólitos que militam na direita e no bolsonarismo. A ambiguidade do governo brasileiro e sua demora em agir em relação ao tarifaço trumpista é muito desanimador. A criação de um comitê de empresários e o envio de senadores aos EUA em reforço à opção diplomática, quando se observa que Trump rejeita esse tipo de alternativa, não convencem e não superam a inação. A questão é: o que fará o governo brasileiro quando o tarifaço de 50% se efetivar a partir do início de agosto? Qual é a estratégia? Há estratégia? Causa desânimo e vergonha discursos diplomáticos que buscam reiterar a inserção política do país no Ocidente (que Ocidente?!)[1] e a abertura do território nacional ao exercício militar de tropas dos EUA[2]. Por quê? Tudo isso soa como alinhamento incondicional com o Estado norte-americano, que não esconde e, sempre que pode, manifesta desprezo pelos países latino-americanos[3].
O que se observa com muita nitidez é a proximidade do dia fatal para a efetivação do tarifaço, e o governo brasileiro parece congelado, sem saber o que fazer frente à inflexibilidade norte-americana. A insistência na diplomacia delicada, sem o desenho de uma alternativa mais incisiva e soberana, pode trazer o governo novamente para a situação de crescente perda da popularidade[4]. Em outras palavras, o rugido inicial ou retórico de defesa do país se transformado em miado – e tudo indica que por detrás da sombra do leão há realmente um gatinho -, além de todos os problemas econômicos e sociais que advirão do tarifaço, pode se voltar contra o próprio governo. A falta de esclarecimentos e de mobilização da população, derivada de uma opção equivocada de se articular somente com as elites econômicas, deve resultar em revolta popular quando o desemprego bater às portas. Caso isso aconteça, a insatisfação dos brasileiros será um presente para o oportunismo populista da extrema direita, que não poupará os governantes de burlas e críticas.
Parece faltar à gestão lulopetista, neste momento, uma perspectiva mais estratégica no jogo da geopolítica, bem como a compreensão do essencial nas articulações norte-americanas. É relevante reiterar: a questão não se resume à tomada das dores do bolsonarismo ou à manutenção da extrema direita no Brasil, ainda que ela possa se beneficiar do resultado dos desastres econômicos. A ascensão da China é a questão mais relevante e o Brasil, com sua ambiguidade entre os EUA e o gigante asiático, tornou-se a vítima ideal como membro dos BRICs para receber uma bordoada exemplar. O recado norte-americano não é fruto das idiossincrasias ou das supostas loucuras de Trump, mas expressão de uma política de Estado. É a tentativa mais concreta de atacar os BRICs, combater o projeto de um mundo multipolar e restringir o espaço de influência da China, por intermédio de um país frágil como o Brasil, que conta com elites reacionárias, antipatrióticas e historicamente xenômanas.
A paralisia do governo brasileiro disfarçada de prudência diplomática abre espaço para a manifestação de adeptos da direita conciliadora, que circulam pelas mídias reduzindo um problema de afronta à soberania do país a uma questão de pacificação nacional, no intuito de culpabilizar o próprio governo pela ocorrência do tarifaço e evitar expor os seus aliados da extrema direita que atuam como Cavalo de Tróia dos ataques norte-americanos. Para combater esse tipo de ocorrência, resta ao governo brasileiro agir não só buscando o apoio popular, que foi desprezado até agora, mas utilizando também os instrumentos formais disponíveis para enfrentar a situação de uma guerra comercial, a exemplo da Lei da Reciprocidade Econômica, cobrança de impostos sobre lucros das big techs norte-americanas e quebra de patentes.
Essas medidas já foram aventadas dentro do próprio governo e o presidente insinuou a possibilidade de cobrança de impostos das big techs, ação negada pelo seu Ministro da Fazenda[5], que tem insistido na manutenção da política de austeridade econômica, bem como na preservação de uma relação de boa vizinhança com segmentos das burguesias nacional e internacional. As ambiguidades no trato das questões internas e externas são, certamente, um aspecto negativo da gestão lulopetista. Elas são perceptíveis na contraposição de um discurso à esquerda para o eleitorado, em função de pleitos eleitorais, e uma prática neoliberal na área econômica que o aproxima de agendas à direita, em função das alianças com as elites. Esse tipo de ocorrência é um impeditivo para a adoção de um projeto autônomo e soberano para o desenvolvimento do país, bem como de uma postura mais enérgica em reação às imposições imperialistas dos norte-americanos.
O tempo passa e a possibilidade de uma crise econômica mais séria se avizinha. Até o momento, observa-se apenas o desgaste de alguns ministros do STF, que têm recebido traulitadas do governo norte-americano devido ao empenho em fazer cumprir a lei nos processos que envolvem Bolsonaro e seus acólitos. Não obstante as tentativas do vice-presidente e seu comitê de empresários de encontrar algum tipo de interlocução com os norte-americanos, nada mais se observa de estratégico além da retórica em torno da questão da soberania, principalmente do presidente que já se encontra em campanha eleitoral[6]. O fato é que Trump não dialoga, mas apenas ordena, age de forma truculenta e sem piedade. Frente a um carrasco, a mansidão é sinal de fraqueza e serve de combustível ao poder mórbido do sádico. A demonstração de fragilidade será a sinalização para a escalada das sanções. Caso o governo deseje realmente sair dessa encalacrada é preciso descer do muro, traçar estratégias, reposicionar o país no tabuleiro da geopolítica mundial e de fato defender a soberania nacional com ações concretas[7], ou seja, é urgente decidir se pretende ser leão ou apenas um gatinho acuado.
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[1] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2024/10/brasil-e-ate-onde-sei-um-pais-do-ocidente-diz-chanceler.shtml - 23/10/2024.
[2] https://anovademocracia.com.br/exercito-eua-militares-brasil-caatinga/ - 16/07/2025.
[3] No caso do Brasil, Trump tem asseverado que o país não é um bom parceiro comercial, ainda que a relação seja superavitária para os EUA nos últimos 15 anos. Ademais, a embaixada norte-americana no país, recentemente, publicou uma mensagem extremamente agressiva contra migrantes, certamente direcionada aos brasileiros, comparando-os a ETs e incitando-os a deixar os EUA. Conferir: https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/07/23/embaixada-dos-eua-no-brasil-publica-post-contra-imigracao-ate-o-et-sabia-a-hora-de-voltar-para-casa.ghtml.
[4] O governo brasileiro externou sua indignação na desacreditada OMC sem citar os EUA e sequer a agressividade trumpista. Preferiu o discurso genérico de contraposição à política da tarifação, realçando a timidez nas críticas, e parece ter se sentido satisfeito com a manifestação de apoio moral de cerca de 40 países. Conferir: https://cbn.globo.com/economia/noticia/2025/07/23/na-omc-brasil-critica-tarifas-sem-citar-trump-e-recebe-apoio-de-cerca-de-40-paises.ghtml.
[6] O presidente tem se manifestado de forma efusiva em pronunciamentos, a exemplo do que ocorreu no dia 24/07/25 no contexto do I Encontro Regional de Educação Escolar Quilombola do Sudeste, com contundentes críticas ao bolsonarismo e ao tarifaço norte-americano, mas com forte acento eleitoral. As falas inflamam a audiência, mas, para além da retumbância típica dos palanques, o que há realmente de ações concretas, por parte do Poder Executivo brasileiro, no combate ao entreguismo da extrema direita e ao assalto norte-americano?
[7] Isso não deveria compreender, obviamente, a disposição entreguista de colocar na mesa de negociações, sem nenhuma estratégia mais clara, as terras raras brasileiras e minerais essenciais ao desenvolvimento tecnológico. Conferir: https://olhardigital.com.br/2025/07/25/pro/por-que-os-eua-estao-de-olho-nas-terras-raras-do-brasil/.
