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Necessidade de Novas Lideranças

José Mendes de Oliveira

22 de setembro de 2025

“Se o partido se confunde com o poder, então ser militante do partido é tomar o caminho curto para alcançar fins egoístas, ter um cargo na administração, ser promovido, mudar de escalão, fazer carreira”.

(Frantz Fanon)

Há momentos na história que a gente parece ter perdido o fio da meada. Tudo fica muito confuso e o que pensávamos saber sobre nós mesmos e sobre o mundo se abala como em um terremoto. Temos a forte impressão de sermos engolidos por uma avalanche de dúvidas e, sem exageros, tangenciamos os limites da perda de sentido e da depressão. A sensação mais crítica pode ser entendida como uma mistura de claustrofobia e teleofobia. Nesses momentos, muita gente corre atrás de uma solução fácil e se apega às artes da adivinhação ou aos presságios religiosos, quando não se lança a uma cegueira autoassumida e ao conforto hedonista do carpem die. Nesse caso, a tradicional fórmula do despregar-se da realidade é a saída mais efetiva, seja por intermédio das mais diversas formas de fanatismos ou pelo entorpecimento viabilizado por alguma substância milagrosa.

No entanto, para quem insiste em fugir das saídas alienantes, ainda resta a difícil, mas talvez mais corajosa e iluminante, alternativa do uso da razão, ainda que ela própria possa estar comprometida em meio aos assaltos da irracionalidade. Essa parece ser a situação em que nos encontramos atualmente, quando os conceitos são destorcidos, as verdades ignoradas e a racionalidade vilipendiada. Em meio ao avanço do extremismo e do anti-humanismo em diversas partes do mundo, do acirramento da intolerância, da ampliação dos preconceitos e da adoção das guerras na persistência das práticas imperialistas talvez seja salutar, sobretudo para quem ainda não jogou a ciência na lata do lixo, buscar a objetividade dos fatos, os nexos causais e o poder explicativo dos conceitos para entender o que se passa no mundo e sobre o que nos impacta de forma tão destrutiva. Esse talvez seja o momento ideal para buscarmos explicações para além dos limites de nossas subjetividades.

Nessa direção, vale a pena destacar as contribuições analíticas de Giovanni Arrighi (1937-2009), economista italiano, que elaborou três obras primorosas entre os anos 1990 e 2000, traduzidas para o português e lançadas no Brasil: O Longo Século XX[1], Caos e Governabilidade[2] e Adam Smith em Pequim[3]. Os dois primeiros livros são essenciais para entender o processo de ascensão do capital, os ciclos sistêmicos de acumulação e os momentos de crise, que marcam o destino das nações hegemônicas no sistema capitalista mundial. As análises de Arrighi se sustentam nas contribuições teórico-conceituais de diversos pensadores, entre eles Karl Marx (1818-1883), Antônio Gramsci (1891-1937), Fernand Braudel (1902-1985), Karl Polanyi (1886-1964) e Immanuel Wallerstein (1930-2019). Destaca-se em suas análises a influência da noção de longa duração de Braudel[4], aplicada ao estudo da história em diferentes ritmos temporais, e o conceito de sistema-mundo de Wallerstein[5].

Não é fácil resumir as análises de Arrighi e talvez o mais prudente seja a leitura integral de suas obras, que são inquestionavelmente arrojadas. De qualquer forma, grosso modo, o analista investiga as transições hegemônicas e a luta pelo poder intra e interestatais em períodos que abrangem do século XIII, com a ascensão comercial de Veneza, até o século XX, com a crise de hegemonia dos EUA a partir da década de 70. A dinâmica das transições compreenderia, de acordo com nossa tentativa simplificada de síntese, o seguinte processo: a expansão sistêmica de um centro hegemônico intensifica as rivalidades entre grandes potências e dá curso ao surgimento de novos núcleos de poder nas margens do raio de ação do Estado hegemônico, bem como a expansão financeira centrada nesse centro, e esse movimento conduz à desintegração da organização sistêmica com escalada da luta pelo poder e concentração da capacidade militar e financeira nas mãos de um novo centro, que assumirá o papel de Estado hegemônico mediante o declínio do centro hegemônico precedente. Todo esse processo, que não deve ser considerado de acordo com uma perspectiva evolucionista, decorre das próprias contradições intrínsecas ao sistema capitalista e envolve não só aspectos econômicos infraestruturais, mas também a intensificação dos conflitos sociais com o surgimento de novas camadas, classes e grupos sociais, bem como de novos formatos organizacionais. No curso da história, priorizando-se os períodos analisados por Arrighi, evidencia-se que:

“O desenvolvimento exitoso do capitalismo veneziano, formalmente organizado e regulamentado, acarretou como tendência contrária a formação do capitalismo genovês, disperso, informalmente organizado e assim também regulamentado. A plena expansão do capitalismo genovês, por seu turno, provocou o ressurgimento, na Holanda, do capitalismo formalmente organizado e regulamentado, através da formação de poderosas companhias de comércio e navegação. E, à medida que a expansão dessas companhias atingiu seus limites, o capitalismo informal voltou a triunfar no imperialismo britânico de livre-comércio, apenas para ser outra vez substituído pelo capitalismo formal dos altos escalões de governo e das grandes empresas norte-americanas”.[6]

O que gostaríamos de destacar, a partir das obras de Arrighi e sem nos aprofundarmos em todos os elementos abordados em profundidade pelo analista, é precisamente o momento atual em que assistimos às contorções dos EUA para manter sua hegemonia no sistema mundial. Não nos parece duvidoso afirmar que é, precisamente, a crise sinalizadora do sistema capitalista anunciada com o declínio norte-americano, a base do que inicialmente nos referimos como um terremoto[7]. Monstros que nos atormentam o espírito como a austeridade fiscal no Brasil, os tarifaços trumpistas, o crime organizado infiltrado na política, as guerras e vários outros atos de violência do extremismo nazifascista esparramados pelo mundo se explicitam neste contexto, ou seja, são sinais de uma crise mais profunda que transcende o teatro provinciano do dilema brasileiro travado entre lulopetistas e bolsonaristas posto sob os holofotes das mídias nacionais como episódios de uma telenovela. Aceita a tese de que o sistema-mundo caminha para mais uma reviravolta, inclusive com o incontestável protagonismo da China que parece prenunciá-la como um futuro centro hegemônico, resta observar como os países se posicionam no tabuleiro da geopolítica ou como traçam suas estratégias para o futuro.

Tudo indica que, infelizmente, nós brasileiros estamos perdendo novamente a escolha de um assento confortável no trem da história. Por incompetência ou azar – caso aceitemos a mística do destino ou do fado – não contamos com lideranças visionárias e estrategistas neste momento de transformações históricas. O teatro brasileiro reprisa a fatídica história de um país regido por elites autocráticas, golpistas e antipatrióticas, por partidos políticos provincianos e por uma desestimulante cultura dos pactos débeis, dos conchavos, das anistias e das pacificações, inclusive inconstitucionais. Infelizmente temos falhado nos cuidados com nossa democracia, assim como nos falta mais empenho para cuidarmos de nossas riquezas e de nossa população, ainda que possamos registrar o esforço individual e voluntarista de alguns poucos. O país de passado escravagista e de inúmeros golpes de Estado não conseguiu e não consegue superar os seus piores cacoetes, entre eles os acordos tricotados em escritórios fechados na calada da noite, que garantem retrocessos e freiam quaisquer possibilidades de um futuro promissor para o país[8].

A frente ampla organizada em 2022 para conter os avanços da extrema direita, ainda que necessária naquela conjuntura, não resultou em grandes feitos que possam ser atribuídos ao governo vitorioso nas urnas, tendo em vista que a reação mais forte à avalanche bolsonarista coube ao Judiciário, ao passo que o governo cumpriu e tem cumprido um papel conciliador e desmobilizador dos movimentos sociais. Distante das bases populares e preso à lógica anacrônica dos acordos tricotados em gabinetes com uma base parlamentar reacionária, infiel e antirrepublicana, o governo da frente ampla se arrasta para assegurar de forma precária a governabilidade, ao passo que busca agradar a população mais carente com políticas sociais compensatórias, que não permitem ir além das ações cosméticas de cunho eleitoreiro. Nesse aspecto, inclusive, o governo federal se assemelha, não raras as vezes, aos governos locais. Perdido na verve da conciliação infrutífera com as frações reacionárias da burguesia nacional[9], o governo da divisa conservadora “União e Reconstrução”, após decorridos quase três anos de gestão, agora percebe que precisa de uma base social que foi o tempo todo ignorada e, com os olhos voltados para as eleições de 2026, anuncia a defesa da soberania com a divisa “Governo do Brasil, do lado do povo brasileiro”. Há verdade ou pelo menos sinceridade nessa aparente mudança de rumos? As práticas parecem, por enquanto, não legitimar os discursos[10].

Falta ao governo da frente ampla e aos seus dirigentes lulopetistas um projeto nacional e a visão estratégica de país. O mundo fervilha no caldeirão das transformações que se prenunciam, mas no Brasil as elites, os políticos oportunistas, os burocratas, os apoiadores e detratores midiáticos e os intelectuais das diversas tendências ideológicas, que não são necessariamente orgânicos e hoje optam também por ser midiáticos, se esbofeteiam para definirem os rumos das próximas eleições ou acessar o poder, ainda que não saibam exatamente para quê, além da manutenção dos interesses mesquinhos, imediatistas e depredatórios de sempre. O sentimento da orfandade política que acomete fração considerável da sociedade talvez seja o combustível da já referida sensação de claustrofobia e teleofobia. É como estar à beira do precipício e não enxergar outra saída, uma solução coletiva, a não ser a opção subjetiva de lançar-se no vácuo ou despencar-se para o fundo do buraco. Falta utopia e falta sonhadores que possam articular-se coletivamente para torná-la uma realidade.

Embora os tempos sejam outros, o lugar seja outro e a conjuntura também, cometendo ou não anacronismo, ainda nos sensibilizam as palavras de Frantz Fanon, quando nos alerta que não se deve seduzir o povo, dissipá-lo na emoção e na confusão, mas, de forma realmente revolucionária, permitir a sua ascensão ao palco da história. Isso significa que partidos e lideranças realmente comprometidos com questões atinentes à nação devem buscar o engajamento coordenado e consciente do conjunto do povo. A causa deve ser sempre coletiva e a experiência da nação a experiência de cada cidadão[11]. Parece-nos que precisamos, rapidamente, refundar no Brasil partidos e lideranças que sejam realmente comprometidos com o futuro do país e de seu povo. Partidos que não sejam apenas a arena de políticos profissionais e de carreiristas, voltados para seus próprios interesses[12] e para assegurar os dividendos de acordos e conchavos voltados à manutenção do status quo. Sem essa alternativa, a sobrevivência em um mundo em transformação será muito traumática e, mais uma vez, perderemos a chance de nos posicionarmos de forma verdadeiramente soberana, altiva e autônoma quando uma nova ordem mundial e um novo centro hegemônico se estabelecerem como realidade de fato.  

Por fim, é justo destacar que, em meio a tantas desilusões, nem tudo é causa perdida, e prova disso foram as manifestações realizadas no dia 21 de setembro de 2025, em várias capitais do país, contra a PEC da Blindagem e repúdio à anistia para os protagonistas da tentativa de golpe de Estado em 2022/2023. A surpreendente mobilização da sociedade civil e dos movimentos sociais, não obstante o sutil afastamento do governo que reitera o seu distanciamento das bases populares[13], é a esperança de uma centelha ou da vivacidade das brasas em meio as cinzas. Tudo indica que os brasileiros, que não se sentam à mesa com as elites e nem se fantasiam com o verde-amarelo da extrema direita, já estão cansados de conchavos e de acordos infrutíferos para o conjunto da população. A multiplicidade de cores, vestimentas e flâmulas nas manifestações realçaram a diversidade, a espontaneidade e o caráter popular dos atos. Tudo indica que o desejo e o potencial para mudanças positivas no país ainda não se extinguiram, mas para que possam reacender de fato é necessário o suporte de novas lideranças políticas, comprometidas com os anseios nacionais, capazes de compreender a complexidade do mundo atual e de traçar estratégias em torno de um projeto de nação, que possa garantir um futuro promissor para todos os brasileiros.

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[1] Giovanni Arrighi. O Longo Século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro. Contraponto, 2013.

[2] Giovanni Arrighi. Caos e Governabilidade: No moderno sistema mundial. 2ed. Rio de Janeiro. Contraponto, 2025.

[3] Giovanni Arrighi. Adam Smith em Pequim: Origens e fundamentos do século XXI. São Pulo. Boitempo, 2008.

[4] Fernand Braudel. A Dinâmica do Capitalismo. Rio de Janeiro. Rocco, 1987.

[5] De uma forma muito resumida, na compreensão do sistema-mundo, o capitalismo é observado em termos de uma economia-mundo com múltiplos centros políticos integrados em um único mercado, que envolve também uma divisão internacional do trabalho. Conferir: Immanuel Wallerstein. El Moderno Sistema Mundial. México. Siglo XXI Editores, 2011 (Vol. 1 – Prólogo).

[6] Giovanni Arrighi. O Longo Século XX, pg. 341.

[7] Esses sinais têm sido registrados em diferentes momentos históricos que prenunciam crises, a exemplo das tensões imperialistas, da corrida armamentista e das rivalidades econômicas entre as potências europeias, que antecederam a Primeira Guerra Mundial, bem como a ascensão do nazismo na Alemanha na década de 30, que antecede a Segunda Guerra Mundial.

[8] Resume essa tendência, com propriedade, a letra da canção popular: O que a gente faz / É por debaixo dos panos / Prá ninguém saber / É por debaixo dos panos / Se eu ganho mais / É por debaixo dos panos / Ou se vou perder / É por debaixo dos panos.

[9] Nessa aliança com as elites sobressai de forma muito incômoda os agrados explícitos ao agronegócio e ao setor financeiro, que, tradicionalmente, optam por alternativas conservadoras e pelo apoio às legendas da direita e da extrema direita. No que se refere ao agronegócio, ou seja, a um setor especializado na exportação de commodities, que apoia e incentiva abertamente o bolsonarismo, o Governo Federal lançou o Plano Safra 2025/2026 com um aporte de R$ 516,2 bilhões destinados à agricultura empresarial, valor que representa um recorde histórico e que supera de forma significativa o apoio despendido para a última safra. Conferir:  https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/noticias/governo-federal-lanca-plano-safra-2025-2026-com-r-516-2-bilhoes-para-impulsionar-o-agro-brasileiro.

[10] O preço a se pagar por voltar as costas para as bases populares pode ser observado na fragorosa derrota do Movimento ao Socialismo boliviano em 2025, após cerca de 20 anos no poder, para a direita tradicional. Pesou na balança a combinação de políticas econômicas mal alinhavadas do ponto de vista estratégico, centradas excessivamente na exportação de commodities (destacando-se a produção de gás e extração mineral) e a cizânia dentro do partido causada pelas disputas entre Evo Morales e Luis Arce. A política econômica levada à frente por Arce, ungido inicialmente por Morales, resultou inflação de alimentos, falta de combustível e escalada do dólar, entre outras mazelas. Tudo isso serviu para alimentar a sanha das oligarquias tradicionais e o revanchismo racista das classes médias, que vociferaram em direção à vitória os mantras do neoliberalismo já conhecidos em muitos lugares na América Latina, inclusive no Brasil da endeusada austeridade fiscal. Conferir artigo de Álvaro García Linera – Bolívia: por que a esquerda e o progressismo perdem eleições? Diários do Sul Global. Opera Mundi, 18 de agosto de 2025.

[11] Frantz Fanon. Os Condenados da Terra. 1ed. Rio de Janeiro. Zahar, 2022 (pag. 198).

[12] A face corporativista dos deputados brasileiros ficou escancarada com a aprovação na Câmara Federal da PEC 3/2021, apelidada de PEC da Blindagem ou PEC da Bandidagem, que estabelece a exigência de autorização prévia da Câmara ou do Senado para que uma ação penal contra parlamentares possa ter andamento no Supremo Tribunal Federal (STF). A medida é um indefensável estratagema contra a transparência e garantia ignóbil à defesa da impunidade, que, infelizmente, contou com os votos de parlamentares dos mais diversos partidos e coloridos ideológicos, incluindo o Partido dos Trabalhadores. Conferir: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2025/09/17/quem-sao-os-deputados-do-pt-que-votaram-pela-pec-da-blindagem-veja-nomes.htm.

[13] Conferir: https://www.metropoles.com/colunas/igor-gadelha/governo-tenta-manter-distancia-de-atos-contra-pec-da-blindagem.

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